27/07/2022

PAULO BALDAIA

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Alυɢα-ѕe reтrαтo
(мυlнer тrαɴѕ ɴeɢrα)
pαrα υмα вoα dιѕcυѕѕα̃o

Enquanto as pessoas com poder se entretêm em grandes duelos destinados a serem eternos, porque essas pessoas se afastam cada vez mais umas das outras na hora de disparar [argumentos], impedindo desta forma que alguém dê um tiro certeiro e acabe com qualquer polémica, há pessoas a sofrer discriminações inaceitáveis.

É certo que há quem lhes faça mais mal que bem, buscando para si próprio o direito exclusivo de defesa. Ressuscitam o Santo Ofício, cumprindo a sua função com excesso de zelo, vendo inimigos em todo o lado. É absurda a ideia de que só um negro pode falar do que sente um negro vítima de racismo, de que só uma mulher pode teorizar sobre os direitos que continuam a ser negados às mulheres ou de que só uma pessoa trans pode denunciar o sofrimento que lhe impõem a sociedade e até a própria família. Levada ao extremo, essa ideia faria com que uma mulher trans negra, por ser ultraminoritária, ficasse a defender-se sozinha, sem encontrar na sua vivência alguém com as suas "habilitações" para defender um mundo melhor. Quando foi que desacreditámos na capacidade de toda gente decente reconhecer sofrimento, mesmo em coisas que nunca vivenciou?

De igual forma, percebemos que o mundo avança muito devagar quando demasiados colunistas protestam contra a linguagem inclusiva e a linguagem neutra sem nunca terem tido o cuidado de afirmar (com um décimo da veemência, vá lá) a sua solidariedade com as pessoas que sofrem, vítimas de comportamentos discriminatórios de uma parte significativa da sociedade. Leio alguns desses colunistas e pergunto-me se eles reconhecem a existência de pessoas trans. A lei que dá o direito a essas pessoas de mudar de nome e de género só tem 11 anos, imaginem o sofrimento que estas pessoas tiveram de suportar, no tempo em que, para lá da discriminação que ainda sofrem, a sua identidade nem sequer era reconhecida pelo seu país.

A ideia de que o homem branco heterossexual tem sido vítima desta luta é verdadeiramente ofensiva. Não é aceitável esta vitimização em relação a uma luta que em nada, repito em nada, muda o privilégio de não ter de sofrer qualquer tipo de discriminação. Privilégio que, apesar dos avanços significativos das últimas décadas, é um exclusivo dos homens brancos heterossexuais. Tanta gente nas colunas de opinião a sufocar porque lhe querem "impor" meia dúzia de palavras novas, ou velhas mas escritas com uma grafia diferente, e este é o país onde uma mulher branca só na lei tem os mesmos direitos que um homem branco.

Ainda assim, quem está em permanência no pelourinho são as minorias que lutam para não serem discriminadas, nem responsabilizados por tudo o que mau acontece: os imigrantes que nos procuram, os negros, os ciganos, as pessoas LGBT... A linguagem inclusiva ou a linguagem neutra que nos deixa a "todes" sem paciência é coisa pouca para homossexuais tratados por "paneleiros" ou por "rotos" e para as pessoas trans que são vistas como "coisas" ou "aberrações". Querem mesmo discutir linguagem opressora? Os que têm medo de tudo o que é diferente não querem ser obrigados a pensar em que casta colocariam uma pessoa que fosse capaz de juntar em si própria algumas das características mais difíceis de lidar. Imagine, por favor, que no próximo domingo o seu filho leva a namorada a casa para almoçar e ela é uma mulher trans negra. Está satisfeito com o que vê?

Pode parar de olhar para o retrato da namorada do seu filho, é o que vê dentro de si que o assusta.

*Jornalista

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 25/07/22.

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