20/06/2022

JOÃO VILLALLOBOS

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Longe dos russos

Aqui perto do oceano longe dos russos, a fugir à ministra sobre o caos nos hospitais, à inflação na conta do supermercado e da bomba de gasolina, à subida das taxas de juro na prestação da casa, à condutora do tuk tuk que partiu a janela de um elétrico, à guerra que continua para lá do admissível   

Desde já aviso que vou escrever esta crónica socorrendo-me de muitas palavras alheias e desde logo começo pelas do Filipe Nunes Vicente: “Milan Kundera nunca tinha visto o mar na sua Checoslováquia natal. Exilado, chega a França e o seu editor leva-o à sua casa de praia em Crozon (Bretanha). Kundera mira o oceano e murmura: É então aqui que se está mais longe dos russos…”

Nesta semana, pouco ou nada produtiva entre o fim de semana prolongado e o feriado do Corpus Christi, também eu mirei o oceano e fiz por estar longe dos russos,  iniciando a leitura de ‘Breve História dos Tractores em Ucraniano’ da autoria de Marina Lewycka e que, entre nós, foi editado pela Civilização, sobre duas irmãs desavindas mas que juntam forças quando o pai anuncia o casamento com uma jovem noiva ucraniana caça-fortunas. Nos intervalos da leitura fui-me alienando com coisas ainda mais parvas, como o artigo da revista ‘The New Yorker’ sobre Lang Lang, o pianista que há mais de uma década se tornou mundialmente conhecido por tocar Chopin com uma laranja e que o artigo associa pela sua dimensão de espetáculo a Vladimir de Pachmann, o especialista de Chopin que há um século treinava os dedos ordenhando vacas e os mergulhava em brandy antes de cada concerto.  

Acho normal que esteja a perder o juízo. Eu, não o Vladimir que já nem se encontra entre os vivos. O Lang Lang não faço ideia, mas também não deve jogar com o baralho todo. Decido trocar as redes sociais por mais livros e num deles, assinado pelo João Céu e Silva sobre o ano de 1961 em Portugal, encontro estas palavras de Camilo Mortágua a propósito do assalto ao paquete ‘Santa Maria’: “Não há heróis. Existem é pessoas que num dado momento são confrontadas com uma determinada situação e lhe respondem com atos. Mais nada!”. E ao ler a frase lembrei-me do ‘Perfil de Salgueiro Maia: Herói a contragosto’, assinado aqui na VISÃO há uns anos pelo J. Plácido Júnior: “Só fiz o que tinha de ser feito”, disse o capitão de Abril, um homem que no dia 25 respondeu com atos a determinadas situações.

Apetece-me ligar ao meu amigo Fernando Sobral para falar com ele sobre o tema. Não o dos alcandorados a heróis contra vontade, mas o de me sentir em progressiva alienação da realidade. Aqui perto do oceano longe dos russos, a fugir à ministra sobre o caos nos hospitais, à inflação na conta do supermercado e da bomba de gasolina, à subida das taxas de juro na prestação da casa, à condutora do tuk tuk que partiu a janela de um elétrico, à guerra que continua para lá do admissível.  Depois recordo-me de que o Fernando morreu. Uma merda que não me dá jeito nenhum. Vou envelhecendo e é exatamente como o Jorge de Sena descreveu a Sophia de Mello Breyner, após a morte da mãe dela, citando Rilke: “Nós começamos a viver como Rilke dizia que os anjos se sentiam, sem saber se estamos entre vivos ou entre mortos, porque as pessoas desaparecem, transformam-se em memória, e a gente vai ficando numa cada vez mais estranha irrealidade em que a maioria dos vivos não faz parte do nosso mundo que atravessam como espectros secundários, enquanto o espaço vazio se acumula de espectros autênticos que precisamente são os que deixaram de existir”. É isto. É mesmo isto. Infelizmente.    

Co-founder OrbiConsulting       

IN "VISÃO" - 17/06/22.

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