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E o espelho, habituado àquela rotina, numa transparência em que nem se reconhecia, fez-se ouvir: «Vossa excelência passará à História como o Presidente dos afetos, distribuiu megatoneladas de beijocas e outras momices, abriu o seriado das selfies, não perdeu um velório nem um cortejo fúnebre de anónimos e figuras ilustres, deu vários mergulhos pelo país fora valorizando o oceano e até medalhou Marco Paulo, esse grande vulto da música popular portuguesa! Quem teria, neste país em que as misérias públicas são tão públicas, coragem para tanto?»
Marcelo, de olhar em órbita, ouvia desconfiado: «Ainda não respondeste à minha questão. Andas a cirandar, a fugir. Esquadrinha o fundo das boas almas lusitanas e faz-me a sondagem. Há ou não alguém neste país mais popular do que eu?»
«Vossa Excelência, pois não tenho eu falado de outra coisa! Os seus mais recentes feitos, então, serão inultrapassáveis. Conseguiu abraçar por duas vezes, como se fosse a única, o antigo presidente da República Xanana Gusmão]. Um feito extraordinário e da maior subtileza que realçou o lado dúbio do timorense. Anunciou aos russos, que andam a brincar às fisgas com os ucranianos, o dia da visita do nosso primeiro-ministro à Ucrânia sem que ele fosse beliscado no trajeto. Nem um míssil, nem um obus, nem uma pedrada!»
Os olhos do Presidente, enquanto o seu alter ego lengalengava, apontavam para o céu como se tentasse acertar com chumbo numa águia. A pele, sempre tisnada pelo sol, cobriu-se de uma vermelhidão alérgica. Ergueu os braços que saudaram com entusiasmo patriótico Xanana Gusmão e, tomado pela raiva, atirou o espelho ao chão: «Então é com estas amáveis palavras que insinuas que eu sou um Presidente popularucho seu grande verme?»
Estilhaçado pelo chão, o espelho, com certo apego à vida, ainda tenta serená-lo: «Que confusão fazeis excelência! Popularucho em toda a linha é certamente o almirante Gouveia e Melo, que apenas andou a dar picas a toda a população portuguesa. Esse sim é popularucho Vossa Excelência. Essa acusação até saiu nos jornais na passada semana. E citavam fontes de Belém. Quem foi não sei!»
* Jornalista de investigação
IN "SOL" - 09/06/22.
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