28/05/2022

RUI PATRÍCIO

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Breve dicionário 

sobre Metadados

Não tenho dúvidas nenhumas de que esta defesa dura contra uma invasão soft da privacidade poderá levar - arriscaria dizer que vai levar - a um alargamento na investigação criminal da invasão hard da privacidade (buscas, escutas telefónicas, escutas ambientais, et cetera).

O recente acórdão do TC sobre o tema dos metadados incendiou a pradaria e já muito se escreveu e disse. O tema é complexo, demasiado complexo para caber em cerca de três milhares de caracteres, e, além disso, eu, embora julgue saber mais sobre ele do que algumas centenas de especialistas instantâneos que por aí brotaram como cogumelos, não creio saber ainda o suficiente para sentenciar uma opinião sobre a questão de fundo. Mas quero deixar três apontamentos:

Efeitos - O acerto ou a falha da decisão do TC não se mede pelos efeitos que tem. Se está certa, está certa. Pode colocar em causa muitos processos? Sim, poderá, mas e então? Se a norma está ferida de inconstitucionalidade, e com isso a prova não é válida, pois assim será, e a decisão só pecará por tardia, mais pecando o Estado por ter feito Lei e aplicado Lei com norma inconstitucional. Se, ao contrário, a decisão está errada, tanto o está se tiver influência num processo quanto se tiver em mil. Não venham, portanto, com o argumento da alegada catástrofe decorrente do juízo de inconstitucionalidade para apurar se este juízo está bem ou está mal. São coisas diferentes, e a primeira é de natureza estrutural, a segunda apenas conjuntural. Está-se a instalar a perigosa moda de misturar alhos com bugalhos, tentando combater algo com que não se concorda brandindo a bandeira dos seus potenciais efeitos práticos catastróficos. Daqui a nada descobrimos, permitam a negra caricatura, uma vala comum com cadáveres de gente torturada para confessar, e é melhor fechá-la de novo, não vá isso colocar em causa centenas ou milhares de processos.

Privacidade - Não posso deixar de achar curioso, apesar da importância que ela tem e que lhe atribuo, tanta preocupação com a privacidade. Seja no raciocínio do Tribunal Constitucional, seja na discussão que se acendeu nos últimos dias. Qual privacidade? A privacidade dos cidadãos que vivem numa sociedade onde não dão um passo sem que, voluntariamente, se coloquem prisioneiros de toda a sorte de dados e de bases deles? O cidadão mete-se no carro, liga o mapa (que exige localização), passa na via verde, vai ao multibanco, almoça e paga com cartão, vai à internet e faz umas comprinhas, já agora com o cartão de crédito, et cetera. E depois, nas horas vagas, para aliviar o stress da falta de privacidade, anda pelas redes sociais, e publica-se a si mesmo, às suas poses, aos seus filhos, et cetera. E preenche, nas lojas, todo o tipo de fichas para promoções e outras benesses com os seus dados pessoais, regista-se em programas assim e assado, adere a isto e àquilo, vincula-se a todos os cartões de desconto e mais alguns, usa o número de telemóvel para identificação por dá cá aquela palha, et cetera. Privacidade? Pois. E já nem falo no cidadão que aplaude entusiasmado os hackers bons que entram porta dentro dos maus malandros (o cidadão que bate palmas está excluído, bem entendido, pois se entrarem pela sua porta o hacker passa logo a mau).

Proporcionalidade - A decisão do TC faz, entre o mais, aquilo a que se chama um exercício de concordância prática, procurando resolver um conflito ou uma colisão entre direitos ou interesses. Com a decisão que tomou, faz prevalecer a privacidade e, sobretudo, a autodeterminação informativa. Em larga medida por razões de (des)proporcionalidade. Devo dizer que tenho várias dúvidas sobre o bem fundado da decisão tomada, seja pela via da análise da proporcionalidade, seja pela via da possível confusão entre metadados e conteúdo de comunicações, seja até por alguma possível ignorância sobre as exigências normativas e práticas da investigação criminal. Mas do que não tenho dúvidas nenhumas é de que esta defesa dura contra uma invasão soft da privacidade poderá levar – arriscaria dizer que vai levar – a um alargamento na investigação criminal da invasão hard da privacidade (buscas, escutas telefónicas, escutas ambientais, et cetera).

* Advogado especializado nas áreas do contencioso criminal e contraordenacional.

IN "iN" - 27/05/22.

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