25/05/2022

CRISTINA ANDRADE

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Violência doméstica 
não é entretenimento

Está a decorrer, nos Estados Unidos, um julgamento que envolve duas figuras mediáticas: Johnny Depp e Amber Heard. Transmitido em direto, como se fosse um espetáculo, este processo deverá colocar-nos uma questão: por que razão optámos por não acreditar nas palavras da mulher?

Uma das conquistas das democracias é o Estado de Direito, garantindo que a justiça se aplica a todas as pessoas por igual, sem privilégios de classe ou de género e consagrando princípios como o direito à defesa, à presunção de inocência ou à proteção das vítimas.

A justiça não é um espetáculo, não é um filme nem uma série de televisão. Num espetáculo, quem assiste toma partido, decide em quem quer acreditar ou não, de quem gosta ou não. Na justiça não deve e não pode ser assim.

Ao longo das últimas semanas, num tribunal do Estado da Virginia, nos Estados Unidos da América, está a decorrer um julgamento em que um ator (Johnny Depp) processou a sua ex-mulher (Amber Heard) por difamação.

Este processo cruza as excentricidades do sistema judicial norte-americano - permitindo que as sessões sejam transmitidas em direto, oito horas por dia, para o mundo inteiro - com a espetacularidade dos intervenientes e a crua realidade da violência doméstica.

Este processo mostra algumas das dificuldades com que lidam as vítimas de violência doméstica: a falta de testemunhas que presenciem o momento das agressões, a complacência de familiares e amigos com a violência, a culpabilização e descredibilização da vítima. Mostra os processos de controlo da vida da vítima: controlo do telemóvel, das mensagens privadas, dos trabalhos que faz, das roupas que veste, de quando pode sair à rua e com quem. Mostra a violência física e psicológica: agressões, violação, cabelo arrancado, lábios rebentados, violência sexual com uma garrafa, insultos, depreciação. Mostra casas partidas e objetos arremessados. Mostra uma pessoa adorável, de quem toda a gente gosta, que se transforma quando consome estupefacientes.

Mostra também como o ciclo de violência (link is external) e controlo se reproduz – seja com o vizinho do lado seja com atores famosos - e como é tão difícil e complexo para a vítima sair. Porque receia pela sua vida quando fica e quando se afasta também, porque receia ser perseguida, porque receia que ninguém acredite nela, porque receia que a justiça não acredite nela, porque receia nunca mais ter paz...

Mas, mesmo decorrendo lá longe nos Estados Unidos, este processo é um triste exemplo da forma como continuamos a lidar com a violência doméstica. A cobertura deste julgamento tem sido feita por todos os órgãos de comunicação social, inclusive em Portugal. Alguns optaram por cobrir este julgamento nas suas secções de entretenimento. As imagens e o teor dos textos produzidos tendem a credibilizar o testemunho do homem e a desacreditar o da mulher.

A violência doméstica é, de facto, um crime tendencialmente de género, sendo as mulheres as principais vítimas. Atinge todas as classes sociais, todas as formações académicas, todas as profissões, todos os níveis de mediatismo, como este caso exemplifica.

Em Portugal, a violência doméstica é o crime mais participado (link is external), com 23 439 ocorrências registadas em 2020. De acordo com o Observatório das Mulheres Assassinadas (link is external), nos últimos quinze anos, 520 mulheres foram vítimas de femicídio em Portugal.

Apesar do caminho que tem vindo a ser feito, quando se fala de violência doméstica continuam a perpetuar-se os estereótipos culpabilizadores das vítimas. Há poucas semanas, perante um femícídio ocorrido em Ponte de Lima, o Jornal de Notícias (link is external) referia que que a causa da morte eram “ciúmes doentios, mas sem motivo aparente”.

A justiça machista (link is external) continua a desculpabilizar agressões e violência sobre as mulheres. O patriarcado continua a colocar dúvidas sempre sobre as palavras da mulher. Sempre a mulher. Sempre a mulher que deve ter feito algo para merecer aquilo. Sempre a mulher como responsável por não ter visto que o agressor era agressor. Sempre a culpabilização da mulher. Por quê? Por que é que – mesmo perante descrições, fotos e testemunhos – continuamos a duvidar da mulher?

* Dirigente do Bloco de Esquerda, deputada na Assembleia Municipal de Braga, ativista contra a precariedade

IN "ESQUERDA" - 24/05/22.

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