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Para 19 milhões ganhar,
é preciso um ano ou mil
anos para lá chegar?
A remuneração de Carlos Tavares, presidente executivo do grupo
automóvel Stellantis, entrou na campanha das presidenciais francesas,
com Emmanuel Macron a considerar "chocante e excessiva" a remuneração
proposta para o português no ano passado. Não é para menos, 19,1 milhões
de euros de remuneração é o que um trabalhador de salário mínimo recebe
após mil (1000) anos de trabalho. Se trabalhar em França, porque se for
português de origem, como Tavares, mas não tiver emigrado para França,
como Tavares para estudar, precisará de mais de 1600 anos para chegar
aos 19 milhões de euros.
Carlos Tavares não é culpado dos males do
mundo, nem a remuneração (90% variável de acordo com os resultados) é
caso único no setor ou nas multinacionais de acionistas
multimilionários. O grupo que ele lidera lembrou, aliás, que em 2021 os
CEO das norte-americanas GM e Ford receberam mais que Carlos Tavares,
que teve o mérito de levar a PSG de um estado de quase falência, em
2014, para a liderança global no setor, em 2021, com várias fusões pelo
meio. Lembro-me bem de o ter entrevistado quando assumiu a liderança da
Peugeot/Citroën e de, a partir daí, ter ficado atento ao seu percurso.
Não está em causa o seu mérito, mas não é de meritocracia que estamos a
falar quando falamos de alguém que pode ganhar mil vezes mais que um
trabalhador com um ordenado mínimo.
Na PSA em França, nos primeiros anos, Tavares cortou três mil postos
de trabalho, através de saídas voluntárias em que a indemnização subia
quanto mais depressa os voluntários se chegassem à frente, e reduziu a
massa salarial de 15 para 11% da receita. Um sucesso enorme, na lógica
iliberal em que se mede a eficácia do resultado final sem medir
rigorosamente mais nada. A parte mais positiva, a subida das receitas,
também foi feita, sendo que isso apenas ajuda a demonstrar que a saída
das crises tem implicado sempre o sacrifício dos trabalhadores. Quando
desce a massa salarial e ao mesmo tempo sobe a receita, isso significa
naturalmente que a parte do bolo que cabe a quem produz os automóveis
passa a ser menor.
Em campanha, Macron e Le Pen indignam-se com o
valor excessivo atribuído a Tavares e o presidente francês até diz que
quer a União Europeia a legislar um teto máximo para as remunerações da
administração. Soa a falso, porque quem pôde contribuir para estabelecer
regras claras, e não o fez, só diz agora o que diz porque precisa dos
votos dos que trabalham nas fábricas a produzir o que permite pagar
remunerações milionárias a quem dá lucros milionários aos acionistas.
Não se pense que é tudo mau. A empresa, como tem estado a gerar lucros na ordem dos milhares de milhões de euros, deu prémios a todos os trabalhadores. Em França, o ano passado, premiou cada trabalhador com três mil euros. Para chegar aos 17 milhões de prémio de Carlos Tavares (90% de remuneração variável) são precisos 5666 trabalhadores. O equivalente a cinco fábricas e meia iguais à da Peugeot-Citroën em Mangualde.
Insisto, não é Carlos Tavares que está mal, é esta
economia liberal sem regras que, como lembra Macron, acabará por fazer
com que "a sociedade, em algum momento, expluda". Nesta sociedade, onde
são vistas como normais e até merecem aplauso injustiças gritantes,
também é possível verificar que o baixo salário mínimo que se paga em
Portugal só é possível se o Estado (todos nós) contribuir. Foi assim que
a SONAE recebeu do Estado 450 mil euros para subsidiar o aumento do
SMN, no mesmo ano em que a CEO do grupo, Paula Azevedo, teve um aumento
da remuneração de valor idêntico.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" - 18/04/22 .
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