03/03/2022

AFONSO DE MELO

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Uma espécie de saudade

Agora, os periquitos também me visitam, de quando em vez, na varanda dos meus pássaros, aqui a Sul, onde o sol estala à hora da sombra mais curta.

De há uns anos para cá, por entre as folhas das árvores que costumavam fazer de postes de balizas no nosso campo relvado da Cidade de Luanda, nos Olivais-Sul, começaram, mal a Primavera ameaça desbrotar, a desprender-se periquitos verdes que se espalham pelos céus do bairro com alacridade e vão à procura de outras árvores, em outros bairros. A princípio poucos, como perdidos; depois em bando, como se já estivessem em casa. Nunca os vi no tempo de esfolarmos canelas a ensaiar carrinhos e pontapés de bicicleta, numa cultura de futebol à inglesa que nenhuns outros, da Vila de Catió e do Maracangalha ao Vale do Silêncio tinham. O nosso jogo era direto, sem retorcidos. Se fôssemos oito, não jogávamos quatro para quatro (que estucha!): um ia à baliza, outro (geralmente o Luís Cantante) tirava centros, e os que sobravam dividiam-se nos que cabeceavam ou rematavam (sempre de primeira) e nos que, impondo os cotovelos, procuravam impedir os movimentos atacantes. Uma questão de filosofia. “British Association”.

Nesse tempo só os pardais, e talvez os melros, se libertavam das árvores que cresciam tanto que chegavam às janelas do 8.º andar do Lote 484. Depois reduziram-nas a anãs. Periquitos assim, em bandos desordenados, guinchando de alegria, só os encontrei, pela primeira vez, ao longo das avenidas longas de Khayaban-e-Iqbal e Sunset Boulevard, em Karachi, no Paquistão, automóveis velhos e amolgados, camionetas com enfeites indescritíveis, suprassumo da arte kitsh sobre rodas, táxis-scooters no seu concerto infernal de buzinadelas contínuas, os muezzins cantando monocordicamente as cinco orações do dia. Agora, os periquitos também me visitam, de quando em vez, na varanda dos meus pássaros, aqui a Sul, onde o sol estala à hora da sombra mais curta. Nunca pousam. Seguem o seu caminho. Mas deixam no seu rastro verde-esmeralda aquela espécie de saudade do que não chegou a acontecer.

* Jornalista, escritor

IN "iN" - 02/03/22.

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