12/01/2022

MARIA LUÍSA CABRAL

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Qualificações, funções e
carreiras: uma coisa é uma 
coisa, outra coisa é outra coisa
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É perigoso e injusto defender a reestruturação de uma carreira profissional deixando as outras de parte. Se há desigualdades, esta forma de proceder apenas contribui para o seu agravamento.

As questões do emprego, a começar pela precariedade, os direitos laborais, a relação com a entidade empregadora, constituem um bom naipe de problemas. Com eleições legislativas à porta, nenhum partido deveria estar isento de clarificar a sua posição mas, até à data, a direita assobia para o lado. Enquanto a Iniciativa Liberal apertada pela pergunta directa do moderador, lá disse que 900 €/mês para salário mínimo não podia ser, que o estado da economia nacional não o permite, o PSD não se comprometeu. Esta questão vai ter de ser esclarecida. O salário mínimo nacional (SMN), com este valor ou outro, é para ser cumprido na Função Pública e no privado. As confederações patronais gostam tanto deste tema como eu gosto de óleo de fígado de bacalhau. Ainda bem que o SMN é para ser aplicado urbi et orbi. Ora o mesmo não se aplica à valorização das profissões: entre a Função Pública e o privado as mesmas habilitações e tempo idêntico de funções não significa remuneração igual. Não se poderá obrigar o privado a fazer o que para eles é contra natura mas podem criar-se as condições para desequilibrar o estado de coisas. Questão importante que não tem sido suficientemente discutida. Com um certificado académico na mão, as pessoas vivem na miragem de conseguir um emprego no particular porque são mais bem pagos. Bom, a ambição é compreensível mas ela sofreria algum abalo se na Função Pública os vencimentos tivessem uma melhoria palpável e se a esta vantagem pecuniária se juntassem outros incentivos valorizadores da própria carreira como o respeito pelos contratos, a introdução de uma formação de fundo, a participação em projectos de alcance nacional. Motivação, precisa-se.

Há uma angústia generalizada porque os salários são baixos especialmente quando se começa uma carreira. Não que este queixume não seja certeiro mas porque a injustiça em causa está viciada. Dou um exemplo: um professor de história tem uma licenciatura tão válida como a de um enfermeiro mas, na contestação, a voz deste soa bem mais alto. Ou seja, a valorização das profissões é desigual logo na linha de partida. Está errado e tudo depende do ângulo em que nos coloquemos. Inadvertidamente, estamos a acarinhar uma profissão em desfavor de outra(s). É-me impossível admitir que, em começo de carreira, um enfermeiro ou assistente de enfermagem devam ganhar mais do que o professor de história de qualquer criança. Em princípio, os licenciados deveriam começar as suas carreiras na Função Pública no mesmo nível, isto é, com o mesmo vencimento. Um justíssimo e bom príncipio de vida.

De facto, a diferenciação ocorrerá no decorrer do tempo e dependerá da forma como as carreiras forem estruturadas, de como forem definidos os acessos, os concursos e as avaliações. Este somatório proporcionará uma progressão nas carreiras e, no cômputo dos anos, virá à tona a valorização. Uma mão cheia de questões a exigir análise. Tudo começa com a qualificação académica e esta tem de ter uma justa compensação. Se ter qualificação ou não ter for a mesma coisa, se nada for considerado, fica a pergunta óbvia, então para quê a qualificação? Embora a qualificação por si não possa ser uma garantia de progressão na carreira, na sua fase inicial, uma qualificação académica de igual grau (ensino secundário, profissional, licenciatura, mestrado) deve ser remunerada ao mesmo nível. Com o começo em patamar comum, os dados estão lançados. Depois as carreiras (revistas, definidas, comparadas, estruturadas) ditarão acessos mais ou menos rápidos conforme as exigências profissionais específicas.

Este exercício deve ser feito na Função Pública porque as desigualdades são muitas e porque, uma vez feito na Função Pública, servirá de paradigma e modelo para o privado. Claro que no privado as regras são outras mas se os profissionais pesarem as vantagens dum lado e doutro talvez descubram que a Função Pública não é tão má quanto a pintam nem o privado o mar de rosas que nos querem vender. Mudanças e reformas a equacionar sempre com um mote como pano de fundo. É que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

* Bibliotecária aposentada

IN "ESQUERDA" - O8/01/22.

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