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O voto do isolado
Sócrates garantiu estar ao lado dos socialistas, mas a mim parece-me estar atrás, como quem empurra o colega que está receoso de mergulhar da prancha mais alta da piscina
Ficámos finalmente a saber como vão votar os isolados no domingo. Depois de muita deliberação, está definido o método: vai ser à balda. Ainda se estudou a hipótese de ser ao calhas, mas a balda parece oferecer mais garantias. Chegaram a ser estudadas soluções adoptadas noutros países, como a Finlândia, que vai ter urnas ao ar livre para evitar a propagação do vírus, mas Portugal optou por um sistema importado de França: o à Lagardère. Vai ser tudo ao molho e rezar para que não fique tudo de molho. Percebo agora que a Covid-19 é como as doenças que eu inventava no secundário: faziam-me faltar à aula das 8h, mas já estava boa para ir ao cinema à tarde. A cumprir confinamento profilático há vários anos, José Sócrates não revelou se vai respeitar o horário recomendado aos isolados, mas deixou claro o seu sentido de voto, e o facto de ainda estar sentido com o PS. O voto parece ser dos poucos assuntos que Sócrates não quer manter secreto. E é legítimo. Se sabemos que os socialistas votaram Sócrates ao ostracismo, é justo que saibamos também o que ele deseja aos seus colegas. “Estou ao lado de todos aqueles que comigo fizeram política durante os últimos quarenta anos”, disse o antigo primeiro-ministro, deixando António Costa mais perto de ser também “o antigo primeiro-ministro”. Na recta final das campanhas, costuma ser útil ter figuras de renome a tornar público o seu apoio. E este caso não foi excepção. Foi muito útil para o PSD. Pior publicidade ao Partido Socialista seria difícil. Só se João Rendeiro tivesse solicitado voto por correspondência em Verulam, dirigindo a António Costa juras de amor semelhantes às que fez às suas cadelinhas. Sócrates garantiu estar ao lado dos socialistas, mas a mim parece-me estar atrás, como quem empurra o colega que está receoso de mergulhar da prancha mais alta da piscina. Não quer que Costa se lesione com gravidade, deseja apenas que dê um aparatoso chapão, em vez de fazer acrobacias dignas de nota 10, como a que Sócrates obteve no concurso de salto ornamental para o poder, em 2005. O ex-primeiro-ministro é apontado agora como amigo da onça, mas tenho de fazer de advogada do diabo (e não é fácil, são mega-processos, muita papelada): os camaradas do partido também não o trataram muito bem, ele está simplesmente a pagar na mesma moeda. E sabemos que está habituado a trabalhar com dinheiro vivo. Todos temos um Sócrates no nosso grupo de amigos (um Carlos Santos Silva é que é mais raro): aquele que deixa de ser convidado para as festas e, amargurado, fala mal de nós a toda a gente. A única diferença é que Sócrates tem oportunidade de o fazer em directo na TV, de resto, é tudo normal e humano. Depois de tantos anos a criticar o homem por ter uma vida misteriosa, devíamos elogiá-lo quando tem comportamentos fáceis de entender.
* Humorista
IN "VISÃO" - 26/01/22.
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