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Ninguém morre ao sol
As gaivotas pousaram sobre o Sado e uma corrente preguiçosa arrasta-as lentamente para Oeste. O sol estala no lajedo da minha varanda como se os raios estivessem aqui presos, confortáveis, sem vontade de regressar ao lugar de onde vieram. Fito o sol de olhos fechados com a certeza de que ninguém morre frente ao sol.
Às vezes, muito raramente, mergulho no mar, mas não neste Verão serôdio, teimoso, persistente, de céus azuis de horizonte a horizonte. Talvez amanhã chova, não sei, mas não vislumbro nuvens na pacífica planície cerúlea para onde, dizem alguns, partirão os homens bons quando cumprirem a parte da vida que lhes foi destinada. Mergulho e dou umas braçadas largas em direção às Américas, mas isso não é navegar, pois não? O mar acaba por me devolver sempre à areia, como no poema de Ruy Belo sobre o país que o mar não quer.
L’Eté Indien, chamam os franceses quando o calor insiste em prolongar-se por outubro e por novembro. Joe Dassin cantava: “Aujourd’hui, je suis très loin de ce matin d’automne/Mais c’est comme si j’y étais/Je pense à toi/Où es-tu/Que fais-tu/Est-ce que j’existe encore pour toi?” Onde estás tu? Eis uma pergunta que não faço. Para quem já foi o céu, a todo o comprimento de mim próprio, pouco importa. Interessa-me o rio e as correntes. A maré que começou a encher e desloca agora as gaivotas paradas sobre as águas em direção a Leste. Por todas as esquinas há microfones que vomitam aquelas musiquinhas irritantes de Natal, uma espécie de tortura inventada por alguém que acha que nesta altura do ano que aí vem todos devíamos ser obrigados a ser felizes. Quando o sol se põe, lá longe, por detrás dos arrozais, a noite traz consigo um frio que entra pela roupa e se instala no coração. E eu penso como Pessoa tinha razão, tanta razão: “Quando o corpo me arrefece/Tenho frio e Natal não”.
* Jornalista e escritor
IN "i" - 30/11/21
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