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O desporto ou a libertação
controlada das emoções
O
livro de Norbert Elias e Eric Dunning, Quest for Excitement, foi
publicado em 1986, mas a sua história começa muitos anos mais cedo. Em
1954, Elias tem 57 anos. Foge de uma Alemanha nazi em 1933. Depois de
ter passado uns meses em Paris, vai se instalar em Londres. Em termos
profissionais, vai ter posições precárias. Foi assistente de
investigação na London School of Economics, vive de cursos para adultos
que dá na Universidade de Londres e de sessões de terapia de grupo, que
dirige no quadro do Group Analytic Society, formada por alguns
psiquiatras.
Depois de uns anos difíceis, vai receber duas
propostas para leitor em sociologia, de Leicester e de Leeds. Optou por
Leicester. Em 1962, com a sua reforma, vai trocar Inglaterra pelo Gana,
onde durante dois anos será professor de sociologia, na Universidade de
Acra. Os seus pares consideravam que o seu pensamento centrado nos
processos sociais de longa duração era marginal. Isso não estava na moda
na época. Um dos seus alunos, Eric Dunning, vai propor a Elias para se
trabalhar sobre o desporto e o lazer. Este objeto de estudo também não
era fácil nos anos 1950, dado não ter legitimidade sociológica. Elias
refere “quando nós começámos a refletir sobre a questão que nos
interessava, a sociologia do desporto ainda estava nos seus inícios. Eu
lembro-me que nos perguntámos se o desporto, entre outros o futebol,
poderia ser considerado um objeto de pesquisa digno das ciências
sociais, e em particular uma tese no âmbito das Artes”.
Só depois
de alguns anos de ter regressado do Gana, é que Elias começou a
publicar sozinho ou, a maior parte das vezes, em colaboração com Eric
Dunning, textos sobre o desporto. Os textos que integram Quest for
Excitement colocam em perspetiva o que constitui o desporto moderno e
quais são as suas especificidades: a diminuição da violência, a
existência de regras escritas e uniformes, codificando as práticas
desportivas, a autonomia do jogo, relativamente aos confrontos
guerreiros ou rituais.
Elias e Dunning vão romper três
perspetivas que fundavam os estudos consagrados aos jogos e aos
desportos: 1) colocar todos os desportos contemporâneos numa genealogia
de longa duração, que encontram os seus antepassados mais ou menos
diretos; 2) supor que todas as sociedades desenvolveram, de forma
semelhante, as suas atividades e o tempo das práticas desportivas; 3)
relacionar as razões das condutas, tidas como comparáveis através do
espaço e do tempo, com as disposições psicológicas universais.
Estes
dois autores sublinham as diferenças que separam os desportos dos jogos
tradicionais, mesmo se eles têm em comum certos gestos. O desporto
moderno criou espaços e tempos que lhe são próprios. Os estádios, os
ginásios, os velódromos, etc. São locais específicos que cantonam o
exercício e o espetáculo desportivo. Para Elias, o conceito chave que
permite dar conta da aparição do desporto, pensado na descontinuidade
dos confrontos antigos, é o da libertação do controle das emoções.
Existe também uma pacificação do espaço social. Ao colocarem o desporto
nas mutações das formas de competição pelo poder político, os controles
exercidos sobre a violência e a estrutura da personalidade, estes dois
autores tornaram o desporto um observatório privilegiado das evoluções
de longa duração nas sociedades ocidentais. E, como diz Elias, “o
conhecimento do desporto é a chave do conhecimento da sociedade”. O
desporto, como instituição é o produto de corte histórico. Ele surge na
Inglaterra, local clássico do modo de produção capitalista, e da era
industrial moderna. Assume uma significação diferente segundo as classes
sociais. O desporto é o produto da diminuição do tempo de trabalho, da
urbanização e da modernização dos transportes.
* Sociólogo, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática. Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento (CeiED), da Universidade Lusófona de Lisboa
IN "A BOLA" - 11/11/21
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