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O que têm em comum estes acontecimentos históricos? O desconhecimento da realidade local por parte de muitos dos indivíduos que têm vindo a comentar, mas também a escrever, sobre esses assuntos na sociedade portuguesa. Ler as crónicas que abundam por estes dias é observar como grande parte da visão do mundo dos analistas da atualidade se limita a perspetivas filtradas pela imprensa ocidental ou por leituras ideológicas, arredadas do palco onde decorrem as guerras e os conflitos.
Portugal sempre foi um caso curioso onde, normalmente, as grandes discussões fraturantes são sempre as últimas a chegar. E, como tem sido também a norma no nosso país, grande parte das discussões sobre política europeia ou política externa têm sido marcadas por análises geopolíticas que mal roçam a superfície.
Muito poderia ser dito sobre a queda de Cabul, que pôs fim a 20 anos de ocupação norte-americana do Afeganistão, levando a um manancial de informação e desinformação que persiste em ignorar a geografia de alianças e rivalidades entre senhores da guerra afegãos e os seus vizinhos. Mas o meu propósito nesta crónica não é o de traçar as motivações ou a agenda política dos talib de origem pashtun. É, tão-só, sensibilizar para a necessidade de compreender os três eixos fundamentais que têm de fazer parte de qualquer conhecimento sólido sobre aquela região particularmente turbulenta.
Três eixos que passam pela compreensão de como as línguas semíticas evoluíram (o árabe não impera como única língua); pelo estudo da origem das principais religiões, bem como os inúmeros subgrupos que se formaram a partir daí; e, por fim, pelo estudo de como os territórios (bem como os recursos disponíveis) foram sendo invadidos, ocupados e fragmentados desde tempos bíblicos até aos dias de hoje.
Se queremos compreender o que está na origem de grande parte dos conflitos do Médio Oriente, Golfo Árabe e Pérsico, Ásia Central e do Sul, então é preciso aceitar que grande parte destas regiões assentam em identidades fortemente tribais que conjugam de forma complexa língua, religião e pertença territorial. E essas identidades não podem nem devem continuar a ser ignoradas por aqueles que persistem em ver aquela parte do mundo como uma massa homogénea e uniforme.
São imensos os grupos étnico-religiosos que compõem a enorme tapeçaria do Médio Oriente e Ásia Central, mas, a julgar por muitos dos nossos analistas e comentadores, é como se não existissem. Num mundo globalizado, começa a ser embaraçoso exibir este nível de desconhecimento, e talvez seja altura de perceber que não podemos continuar a recorrer a pessoas da nossa bolha para explicar o que se passa fora dessa bolha. É tempo de ganhar uma visão real do mundo com todas as suas complexidades.
* Enquanto luso-libanesa, vive entre duas culturas desde que se lembra, mas Lisboa é onde assentou o coração. Desde muito cedo ingressou no mundo da edição de livros e divulgação literária. Nunca pessoa de se restringir a uma área só, é proprietária de um estabelecimento de cozinha libanesa em Lisboa e, nos últimos anos, ingressou na atividade política, sendo dirigente do LIVRE.
IN "O JORNAL ECONÓMICO" - 02/09/21
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