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O ópio dos telemóveis
Se todos os tempos tiveram as suas transformações tecnológicas, este que vivemos não deixa de surpreender pela forma como se banaliza e até se promove a adição junto dos mais novos
A China anunciou que crianças e jovens só vão poder estar online a jogar três horas por semana. Pelas muitas reações nas redes sociais, percebe-se que somos muitos os pais a tentar lidar com aquilo a que os chineses chamam de ópio espiritual e que se tornou nos nossos dias um antídoto contra o aborrecimento e birras, que de forma paradoxal (propositada, diz quem percebe de algoritmos) cria limiares cada vez mais curtos de atenção e paciência. A proibição é sempre discutível, sobretudo quando mete tecnologias de reconhecimento facial e um país onde o trabalho infantil é uma realidade – como também alguém notou, talvez com menos tempo de ecrã as crianças chinesas fiquem com mais tempo para trabalhar em fábricas de componentes de telemóveis ou vestuário. Mas se todos os tempos tiveram as suas transformações tecnológicas, este que vivemos não deixa de surpreender pela forma como se banaliza e até se promove a adição junto dos mais novos.
A maioria dos jogos infantis para o telemóvel vêm com botões para comprar mais casas e mais personagens e ter é para eles o conseguir mudar de nível. Quando têm tudo o jogo já não interessa. Agarram-se aos telefones com dois anos, tentam deslizar os canais de televisão com os dedos, fazem birras pelo tablet ainda estão a aprender a falar e, se há coisas boas, também descobrem as coisas mais bizarras (versões assustadoras dos desenhos animados, gente que gasta o seu tempo a construir labirintos para hamsters, etc.). É o mundo em que vivemos e tentar diminuir o tempo de ecrã, como qualquer vício, não é fácil e exige força de vontade e tempo dos pais. Sem fundamentalismos, resta-nos ajudá-las a navegar offline com o pensamento crítico que ainda conseguimos ter, porque, mesmo quando não resistimos, nos lembramos de quando se tinha de ficar 30 minutos no recobro de uma vacina sem telemóvel na mão, as fotos das férias só se viam quando se ia revelar o rolo e a viagem era mesmo a olhar pela janela. Nestas férias, demos com uma ajuda engraçada na biblioteca: “Isto é um Livro”, uma história em que um macaco introduz um livro a um burro. Um livro sem wi-fi, sem palavra-passe e em que se muda de página para ler mais! Voltei a lembrar-me do macaco e do burro quando uma noite destas recusei o tablet à minha filha mais nova e fomos ver um livro de “opostos”.
Antes de abrir as abas ela dizia “open, open, surprise!”, como nos vídeos de crianças a desembrulhar ovos-surpresa. É o que é, mas o livro levou a melhor. Devem os Estados meter-se? A regulação pelo menos devia ser mais clara e, se o universo infantil pode por vezes estar distante do olhar dos adultos, a banalização da adição continua a ver-se todas as noites nos intervalos da TV, dominados por anúncios de casas de apostas online, sem que ninguém lhe meta um travão.
* Jornalista
IN "i" - 31/08721
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