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Os presidentes também choram
Um dos raros senhores da História capazes de, sem desistir das suas convicções e de lutar por elas, não ter abdicado de ouvir, até ao fim, os argumentos dos adversários. Dos raros a não se limitar a defender os direitos humanos, com ideias vagas, mas preocupado em “lutar” por eles.
Escassas horas depois da morte de Jorge Sampaio sente-se que não há nada mais a dizer. Cavaco Silva inclinou-se sobre a sua memória. Ferro Rodrigues, um dos companheiros com mais potencial de queixa da liberdade de consciência do ex-Presidente, curvou-se perante o amigo de quase todas as lutas. Marcelo pintou-lhe o retrato fiel do “homem sereno e corajoso” com uma vida “plena de humanidade” em defesa da “Pátria Comum”. Tudo dito.
Sinto que não faço mais do que juntar-me ao coro, vindo de todos os lados e áreas partidárias, saudando a memória de um homem bom. Um dos raros senhores da História capazes de, sem desistir das suas convicções e de lutar por elas, não ter abdicado de ouvir, até ao fim, os argumentos dos adversários, estivessem eles sempre ou ocasionalmente do outro lado da barricada. Dos poucos a respeitar o adversário em qualquer situação. Dos raros a não se limitar a defender os direitos humanos, como ideias vagas, mas preocupado em “lutar” por eles, arriscando-se a meter a mão na massa e passando, pelo mundo, deixando-o melhor em áreas fundamentais.
Em nome da Renascença, devo-lhe um obrigado especial. Em nome daqueles ouvintes de sempre para quem ele, quinzenalmente, aceitou falar, logo a seguir a deixar Belém, meses a fio, num programa de luxo criado pelo ex-diretor de informação Francisco Sarsfield Cabral, o “Três Dimensões”. Ali, ultrapassava muito a discussão da espuma dos dias para passar rapidamente das ondas da atualidade ao oceano das ideias e das mundividências dos participantes.
Foi no início do século (2007/8). O Francisco era um ex-colega de faculdade ligeiramente mais velho e um grande amigo de Jorge Sampaio e comportava-se como mais um participante, tornando o programa numa conversa “a quatro” onde nenhuma dimensão (religiosa, política, económica, filosófica ou estratégica) ficava para trás. Talvez se devesse ter chamado “a quatro dimensões” pela importância do moderador.
Nessa meia hora de programa “enfumarado” onde D. José Policarpo e Pinto Balsemão reclamavam o sagrado direito a fumar, o mundo era varrido de ponta a ponta, interpretando os sinais dos tempos e antecipando o que mais tarde viria, quase sempre acertando. Invocando a necessidade de um cigarro nas mãos para não lhes fugirem as ideias, o fumo chegava até à porta do estúdio ou preenchia as janelas da rua Ivens até aparecer a fragilidade da figura de Jorge Sampaio, na sua bonomia, no seu fino humor britânico, pleno de serenidade com que tantas vezes defendia “on air” as suas ideias, sempre fortes e tantas vezes diferentes.
Era particularmente espicaçado por um Francisco, na altura diretor de informação, mas essencialmente jornalista, sedento de um contraditório ou de alguma “notícia”, ou opinião mais ousada, que a terceira dimensão esbatia entre homens tão diferentes nas opções conjunturais e nas visões do mundo.
Nas breves esperas de uns pelos outros, no primeiro ano de emissões mensais ou “extraordinárias” ( como se chamava às convocatórias de última hora para comentar alguma data ou evento mais excecional) cabia-me fazer “sala” com todos e aproveitar beber da sabedoria alheia nesses pedacinhos, a sós, que os próprios guardavam para um desabafo, uma palavra mais forte, um desânimo mais evidente, aceitando comentar em “off” o que não diriam em “on”, por fazer parte da tal “espuma”, arredada do espírito fundacional do programa. Um desespero quando se sabia que uma frase de qualquer dos participantes, caso fosse quebrado o pacto “tridimensional”, daria sempre manchete. Não sei se aconteceu.
Criado em Janeiro de 2007, no ano seguinte, o programa passou a semanal pela óbvia dificuldade de compatibilização das agendas (sobretudo da pesada agenda internacional do ex-Presidente). Sampaio passou a ser ouvido, a sós, tal como os restantes, de três em três semanas, sobre dois ou três temas pré-agendados, em função da atualidade.
Na conversa com o “Chico”, como todos o tratavam, nunca abdicaram da terceira dimensão do debate sempre dedicado às “questões de fundo” do país, do mundo, ou mesmo de índole civilizacional. Fazendo jus à frase que ficou célebre, em plena crise de 2003, quando a um país de “tanga” se respondia com uma férrea política de austeridade e Jorge Sampaio veio lembrar: “há vida para além do Orçamento e economia para além das Finanças Públicas”. Naquele espaço de rádio, de tão de boa memória, talvez nunca se tenha falado de défice ou de outras trivialidades “menores” para o futuro comum.
Devo-lhe também um dos momentos mais embaraçantes da minha carreira. Sampaio estava ainda no início do seu primeiro mandato. Em 1998 coube-me entrevistar o Presidente quando ele regressava de uma visita ao Faial onde um sismo provocara 8 mortos, mais de 100 feridos e 1700 desalojados. O desabamento das falésias costeiras pusera a nu uma extrema pobreza, lançara o caos riscando do mapa quatro freguesias, e causara danos muito graves noutras quatro.
Era uma entrevista de fundo onde era preciso varrer rapidamente a atualidade e o balanço da visita não tardou muito a surgir. Na altura, a rádio era apenas “som”, não se podia parar a emissão e deixar correr o silêncio, sem se descrever, o que se passava no estúdio. Mal começou a resposta a voz do presidente embargou-se e as lágrimas começaram a correr, sem respeitos humanos, cara abaixo.
Uma emoção genuína a merecer respeito, fez-me prolongar a questão para que não se notasse a emoção extravasante até Sampaio recuperar a sua habitual serenidade. O que vira de pobreza e dor marcara-o profundamente. Aprendi com ele que os presidentes também choram. Nele era natural. Como Marcelo tão bem notou, foi um homem que tendo nascido privilegiado soube dedicar a vida a melhorar a daqueles que não tiveram a mesma sorte.
Foi essa nota aliás que guardo dele. Dessas pequenas memórias fragmentadas que marcam a memória desse Presidente que, durante toda a vida, nunca deixou de se bater pelos direitos humanos, não apenas com palavras e ideias, mas metendo, como poucos, as mãos na massa. Nunca deu férias à intervenção cívica.
Sim, defendeu sem descanso “e sem cansaço” os direitos humanos, mas fê-lo juntando à retórica dos seus talentos de tribuno a coragem de quem quer realmente a mudança e não teme forçá-la.
Enquanto estudante, sendo “um dos filhos do regime” lutou pelo direito de associação e manifestação nas refregas estudantis de 61/62. Como advogado, juntou-se a Vera Jardim e lutou pela liberdade de consciência e oposição na defesa dos presos políticos. Como presidente da Câmara de Lisboa lutou pelo direito à habitação, reforçando o maior programa de erradicação de barracas na sequência da obra iniciada por Krus Abecasis.
Como Presidente lutou pelo direito à autonomia dos povos promovendo uma enorme frente diplomática nacional e internacional que abriu caminho à independência de Timor. Lutou, sem tréguas, pelo direito à saúde como enviado especial da ONU. Defendeu a liberdade religiosa de todos os povos na Aliança para as Civilizações. Fez da luta pelo direito à educação uma arma do progresso de toda a humanidade quando fundou e promoveu a plataforma de apoio aos refugiados sírios e, já nas suas últimas semanas de vida, a estendeu à ajuda à educação das mulheres afegãs.
Lutou pelo direito à sustentabilidade da Pátria Comum na sua guerra pela defesa dos Oceanos. E pelo direito à Paz e à concórdia criando esse Fórum de diálogo entre Presidentes e ex-Presidentes que se institucionalizou como o chamado Grupo de Arraiolos.
Até há poucos dias, em artigos publicados, fez ouvir a sua voz por uma cidadania plena no mundo e na Europa. Quando a Síria voltar a ser um país frequentável terá muitos mestres e doutores formados nas nossas escolas que não deixaram de estudar e poderão preparar o futuro da sua Pátria, graças ao ex-Presidente que esta sexta-feira nos deixou.
Mesmo os que, como eu, estiveram quase sempre longe da área política onde militou (desde a criação do MES à chamada ala esquerda do PS) inclinam-se perante a memória do homem fiel às suas convicções mas capaz de fazer pontes.
Sem ceder à pressão dos companheiros nem dos opositores, acertando umas vezes para desacertar noutras, regido sempre pela sua consciência de homem livre. À maioria dos homens livres está reservada a solidão final, a ele como prova da sua sabedoria, ficou reservado o reconhecimento de amigos e inimigos.
Exceto, talvez, exista ainda, no silêncio, um pequeno reduto dos que sempre verão na dissolução da Assembleia da Républica, que haveria de abrir as portas a dez anos de socratismo, uma falha imperdoável, uma “traição” ao voto popular maioritário de que gozava o Governo de Durão Barroso.
Vale a pena recordar, a esses, que Santana Lopes gozou de cinco meses de “estado de graça” que o então Presidente podia não lhe ter concedido se tivesse ouvido apenas a voz dos companheiros de partido. E quem partiu para outros voos, sem duvida importantes, não foi ele.
Além do mais, quem deu razão à decisão presidencial, foi o povo nas eleições seguintes. Talvez lhes doa ainda. Mas, quem porventura não soube ler os sinais dos tempos não foi, seguramente, o Presidente. Nem esse, acerto de contas, terá ficado por fazer. A Pátria Comum, a Casa Comum da humanidade que ele quis deixar melhor, prestar-lhe-á a merecida homenagem. Fora da espuma dos tempos, na real dimensão.
* Jornalista. Licenciada em economia pela Universidade Católica Portuguesa e diplomada em Ciências da Informação pela mesma Universidade.
IN "RÁDIO RENASCENÇA" - 11/09/21
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