11/09/2021

A DIRECÇÃO DO JORNAL DE NOTÍCIAS

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O presidente que foi 
muitos homens

Pode um homem ser muitos homens? Consegue um Presidente da República ficar na história por (inúmeras) outras razões que não essa, que deriva da sua condição política? Pela coragem que demonstrou, sem abdicar da serenidade que nele era natural, Jorge Sampaio é a demonstração plena de que sim.

Fundamentalmente porque o presidente de lágrima fácil manteve sempre no lugar certo o coração que o traiu aos 81 anos. Era, nas justíssimas palavras de tantos políticos e amigos que esta sexta-feira o evocaram, "um homem bom". Pela sua permanente intervenção cívica, das lutas estudantis enquanto jovem à batalha pela integração dos refugiados, pelo constante apego à democracia e à liberdade na diversidade, pelo valor insubstituível que reservou à solidariedade, o presidente Jorge Sampaio conseguiu essa aparentemente simples missão de se tornar num espírito independente admirado por todos. Da Esquerda à Direita.

Estadista notável com um elevado sentido do país nas suas assimetrias, hábil negociador político, homem de causas, de decisões difíceis. A sua figura frágil era, nesse particular, um falso cartão de visita. Nem a sua reconhecida discrição o impediu de dissolver o Parlamento e fazer cair o Governo de maioria absoluta de Pedro Santana Lopes. "Tomar posição foi coisa que sempre fiz", reconheceu. Não procurava inimigos, mas não claudicava quando era preciso enfrentá-los. Desafiou, em tenra idade, o antigo regime e sofreu na prisão, conspirou contra Soares na guerrilha interna pelo poder no PS. É ele o "pai" da primeira "geringonça", quando promoveu, enquanto autarca de Lisboa, uma coligação com o PCP.

Regionalista convicto, nunca viu cumprido esse sonho, apesar de ter convocado o referendo que viria a chumbar a divisão administrativa do país. Palmilhou o território em abordagens temáticas que expuseram muitas das fragilidades da governação. Um dia ouvimo-lo dizer que "há vida para além do défice", ainda antes de a austeridade que Manuela Ferreira Leite quis impor ao país ser um conceito que acabou por evoluir para algo bem mais nefasto. A visita a Timor, no pós-libertação de um povo exaurido, terá sido, porventura, das experiências mais marcantes enquanto chefe de Estado. Porque mais uma vez o coração de manteiga do presidente sentimental transbordou sob a forma de um abraço que não era só seu, mas de uma nação inteira.

A morte de Jorge Sampaio significa a perda de um Presidente da República ímpar, mas também e sobretudo a perda de um cidadão exemplar e de um português como poucos. O país, todos nós, devemos-lhe essa gratidão. Pode um homem ser muitos homens? Pode. E ainda bem.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 10/09/21

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