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Fundamentalmente porque o presidente de lágrima fácil manteve sempre no lugar certo o coração que o traiu aos 81 anos. Era, nas justíssimas palavras de tantos políticos e amigos que esta sexta-feira o evocaram, "um homem bom". Pela sua permanente intervenção cívica, das lutas estudantis enquanto jovem à batalha pela integração dos refugiados, pelo constante apego à democracia e à liberdade na diversidade, pelo valor insubstituível que reservou à solidariedade, o presidente Jorge Sampaio conseguiu essa aparentemente simples missão de se tornar num espírito independente admirado por todos. Da Esquerda à Direita.
Estadista notável com um elevado sentido do país nas suas assimetrias, hábil negociador político, homem de causas, de decisões difíceis. A sua figura frágil era, nesse particular, um falso cartão de visita. Nem a sua reconhecida discrição o impediu de dissolver o Parlamento e fazer cair o Governo de maioria absoluta de Pedro Santana Lopes. "Tomar posição foi coisa que sempre fiz", reconheceu. Não procurava inimigos, mas não claudicava quando era preciso enfrentá-los. Desafiou, em tenra idade, o antigo regime e sofreu na prisão, conspirou contra Soares na guerrilha interna pelo poder no PS. É ele o "pai" da primeira "geringonça", quando promoveu, enquanto autarca de Lisboa, uma coligação com o PCP.
Regionalista convicto, nunca viu cumprido esse sonho, apesar de ter convocado o referendo que viria a chumbar a divisão administrativa do país. Palmilhou o território em abordagens temáticas que expuseram muitas das fragilidades da governação. Um dia ouvimo-lo dizer que "há vida para além do défice", ainda antes de a austeridade que Manuela Ferreira Leite quis impor ao país ser um conceito que acabou por evoluir para algo bem mais nefasto. A visita a Timor, no pós-libertação de um povo exaurido, terá sido, porventura, das experiências mais marcantes enquanto chefe de Estado. Porque mais uma vez o coração de manteiga do presidente sentimental transbordou sob a forma de um abraço que não era só seu, mas de uma nação inteira.
A morte de Jorge Sampaio significa a perda de um Presidente da República ímpar, mas também e sobretudo a perda de um cidadão exemplar e de um português como poucos. O país, todos nós, devemos-lhe essa gratidão. Pode um homem ser muitos homens? Pode. E ainda bem.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 10/09/21
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