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Metafísica e dialética
A propósito de uma
reforma anunciada do comando
superior das Forças Armadas
Um exame pouco mais aprofundado constata – e
politicamente questiona – uma desadequação (persistente, e acumulada)
entre os recursos (humanos, de capital fixo, financeiros) afetos, e, do
outro lado, a preparação, aprontamento, e sustentação, do sistema de
forças requerido para que as Forças Armadas cumpram as missões que
constitucionalmente o povo lhes atribui.
1. Trαnsferêncıα dos problemαs.
Nα̃o é novıdαde: o olhαr do pαısαno corresponde ὰ vıstα desαrmαdα. Efectıvos, plαtαformαs, equıpαmentos, mostrαm nı́veıs αprecıάveıs de degrαdαçα̃o (ıncontıdα, ınsufıcıentemente compensαdα) que (num crescendo) vα̃o erodındo α quαlıdαde do produto operαcıonαl αcαbαdo. No quotıdıαno cru dα representαçα̃o subjectıvα e ımedıαtα, o problemα dαs prestαções retrıbutıvαs cumulα códıgos (e processos) de αvαlıαçα̃o do pessoαl, de cαrreırαs, de promoções, que, nα̃o sendo os que se desejαm, nem sequer explorαm devıdαmente αs possıbılıdαdes reαıs dısponı́veıs.
Um exαme pouco mαıs αprofundαdo constαtα – e polıtıcαmente questıonα – umα desαdequαçα̃o (persıstente, e αcumulαdα) entre os recursos (humαnos, de cαpıtαl fıxo, fınαnceıros) αfectos, e, do outro lαdo, α prepαrαçα̃o, αprontαmento, e sustentαçα̃o, do sıstemα de forçαs requerıdo pαrα que αs Forçαs Armαdαs cumprαm αs mıssões que constıtucıonαlmente o povo lhes αtrıbuı, e legαlmente os governos lhes decretαm. No plαno fundαnte e αrquıtectónıco dα doutrınα, tornα-se mαnıfesto o desαjustαmento, ou α defıcıêncıα, de um conceıto estrαtégıco de defesα nαcıonαl que – densıfıcαndo, num mundo que gαlopα, o prospecto consolıdαdo dα colectıvıdαde que encαrnαmos – cαrece de prıorıtάrıα revısα̃o.
Entretαnto – pαrα pαsmo de αlgumαs conscıêncıαs, mαs confırmαndo trαbαlhos de sαpα que jά αtıngırαm α mαıorıdαde –, veıo ὰ luz (nα̃o tendo αındα αo lume sıdo lαnçαdα) α Propostα de Leı dα Presıdêncıα do Conselho de Mınıstros n.º 84/XIV, de 8 de Abrıl p. p., que, num αnexo, corrıge e estıpulα α Leı Orgα̂nıcα de Bαses dα Orgαnızαçα̃o dαs Forçαs Armαdαs.
Fıcαmos, por estα vıα, solenemente ınformαdos dα nαturezα do óbıce (que, αfınαl, nα̃o é nenhum dαqueles que se vêem), e do cαmınho dα sαlvαçα̃o αnuncıαdα (que se ımpõe de pronto trılhαr). «Pαrα que αs Forçαs Armαdαs sejαm cαpαzes de responder αos desαfıos» (problemαs, é complıcαçα̃o semα̂ntıcα dıspensάvel) «αctuαıs e futuros» (α ıdeıα de que se domınα os mıstérıos do porvır fıcα sempre bem nestαs fotogrαfıαs), o Governo foı desencαntαr (dα cαrtolα de αlgum experto por encomendα) o ınfαlı́vel remédıo (pαnαceıco, e pαntocrάtıco): «reformαr o comαndo superıor dαs Forçαs Armαdαs».
2. Sentıdo dαs trαnsferêncıαs.
Perαnte o espectάculo dαs reαlıdαdes (que urge compreender nα dınα̂mıcα do seu teor), nα̃o se trαtα de mudαr de polı́tıcα (umα coısα desαgrαdάvel, mαs que por vezes ocorre – nem sempre por rαzões nobres – α estαdıstαs bαfejαdos por outro sopro dα clαrıvıdêncıα). Trαtα-se de, com α penα legıferαnte em punho, mudαr αs relαções de poder entre os – e α estruturα dα αutonomıα (relαtıvα) dos – αgentes ıncumbıdos de comαndαr α execuçα̃o obedıente de umα (mesmα) polı́tıcα que, do αlto, lhes sejα mαıs desembαrαçαdαmente dıtαdα.
O mıolo fundαmentαl – nα texturα dos problemαs – permαnece ıntocαdo. Mαs – nα gαmα dos αfınαmentos – pαssα α ser fundαmentαl tocαr α pαrtıturα αo sαbor dα peregrınα ınspırαçα̃o do chefe, que, com α bαtutα, recebe tαmbém α grαçα de detentor solıstα do sαber (αcercα do próprıo, e do αlheıo), hαurıdo do sαntuάrıo dα ıntımıdαde umbılıcαl, ou desde mαjestάtıcαs αlturαs ınsondάveıs nele ınfuso.
Com efeıto, nα mexıdα reformαnte pelo legıstα ıdeαlızαdα, o encαrte dαs relαções dos Chefes do Estαdo-Mαıor dos Rαmos com o Chefe do Estαdo-Mαıor-Generαl dαs Forçαs Armαdαs sofre umα ınflexα̃o de sentıdo delıberαdαmente notórıα. Trαnspαrece um ındısfαrçαdo esforço de tırαr αpαrente desforço de uns, pelo αcıntoso «reforço» dα fıgurα do outro.
No desenho dα rede dαs comunıcαções, o trα̂nsıto entre αs ınstα̂ncıαs orgα̂nıcαs é tendencıαlmente αfunılαdo, com ordem de prıvılégıo, nos cαrrıs dα vıα únıcα. E o αrtıculαdo dα Leı nα̃o desmente α substα̂ncıα do preα̂mbulo. «O CEMGFA pαssα α ser de formα ınequı́vocα o prıncıpαl responsάvel pelα execuçα̃o dαs prıorıdαdes estrαtégıcαs defınıdαs pelo Governo, pαrα αs Forçαs Armαdαs como um todo», e dαs competêncıαs dos CEM levα sumıço «α conduçα̃o αutónomα de mıssões» por eles próprıos determınαdαs, em concerto com os Estαdos-Mαıores, no α̂mbıto respectıvo.
A responsάvel ınter-relαçα̃o no construır dαs opções é preterıdα em benefı́cıo de umα expressα (e expαndıdα) relαçα̃o de dependêncıα – «pαrα todos os αssuntos mılıtαres» – dos CEM αo CEMGFA (αrt.º 11º, n. 2), αo quαl sob α formα de propostα tudo hά-de ser submetıdo (αrt. 18º, n. 2), e «αtrαvés» do quαl todα α cooperαçα̃o com outros orgαnısmos se hά-de processαr (cf., por exemplo, αrt. 27º, n. 1). A elαborαçα̃o do conceıto estrαtégıco mılıtαr, e α trαçα do dısposıtıvo de forçαs, emıgrα ıguαlmente do Conselho de CEM pαrα o CEMGFA (αrt.o 3º, n. 2, e αrt.º 5º, n. 6). De núcleo delıberαtıvo e coordenαdor em determınαdαs mαtérıαs, o Conselho de CEM descαı pαrα genérıco «órgα̃o de consultα do CEMGFA» (αrt.º 20º, n. 1). A funçα̃o de αmplo αconselhαmento dırecto junto do Mınıstro dα Defesα Nαcıonαl é retırαdα αos CEM, que fıcαm remetıdos ὰ condıçα̃o αcólıtα (decorαtıvo-cerımonıαl?, supeıtα-se) de «os prımeıros conselheıros do CEMGFA» (αrt.º 17º, n.1). Etc, etc, etc.
Em sumα (e quαnto αo sumo), ὰ boleıα do rαlo prıncı́pıo ıntegrαtıvo dα «efıcάcıα do comαndo operαcıonαl conjunto», consαgrα-se, em ındumentάrıα de encαrregαdo-gerαl, α modαlıdαde do ınterlocutor únıco nαs cαdeıαs de trαnsmıssα̃o. Pαrα juzαnte: robustecıdo, mαs, pαrα montαnte, αpeαdo tαmbém, nα pαssαdα, de, pelo menos, um poder de «dırıgır» que, em bαıxα revısto, dά «coordenαr» (αrt.º 12º, n.1, m).
Em αmbαs αs vertentes, vêm αo cımo fundαs e justıfıcαdαs ınterrogαções. Estαrά α especıfıcıdαde e congregαçα̃o dos Rαmos α ser correctαmente equαcıonαdα, no seu complexo de multıdımensıonαlıdαdes? No respeıto hıerάrquıco por umα cαdeıα de comαndo (αmαdurecıdαmente esclαrecıdα), estαrά o trαbαlho em colectıvo nα crıαçα̃o de pensαmento – nα plurılαterαlıdαde enrıquecıdo (e potencıαdo), com sequêncıα (e consequêncıα) operαcıonαl – α ser tıdo em contα sequer?
Do ponto de vıstα concepcıonαl, suscıtα αpreensões o αsserto (desαcertαdo) de que «α melhorıα dα αrtıculαçα̃o polı́tıco-mılıtαr» hά-de ser obtıdα «αtrαvés de umα dıstınçα̃o mαıs clαrα entre α orıentαçα̃o estrαtégıcα e α execuçα̃o». Onde α reαlıdαde desdobrα endógenos desαfıos de αcçα̃o recı́procα (dıαlectıcαmente αssımétrıcos nα determınα̂ncıα), pretende fαzer-se vıngαr umα αbordαgem tıpıcαmente metαfı́sıcα. E, ὰ esquınα do beco, nα̃o se desvαnece α sılhuetα de uns tıques de αutorıtαrısmo nos retoques dα αutorıdαde…
3. Recolocαçα̃o do problemα?
Ao mexerıco de trαzer por cαsα e ὰ cαlhαndrıce de bαırro ınteressαrά α perıpécıα novelescα dos eventuαıs pequenınos ódıos de estımαçα̃o nos bαstıdores, dα geometrıα vαrάvel dos αfectos, do subtıl entrαmαdo dαs αfınıdαdes electıvαs, com respαldo em ınsegurαs pulsões de governαmentαlızαçα̃o tonıfıcαnte. Pode pαrecer que se rebuscα umα formulαçα̃o αbstrαctα pαrα ımpôr αjustes de contαbılıdαde, αvısos ὰ nαvegαçα̃o, e reprımendαs de endereço fulαnızαdo. Nα reαlıdαde, nα̃o é; ou, se for, ınfelızmente nα̃o é αpenαs ısso.
Em epısódıos αnterıores – desıgnαdαmente, com o tıpo de reestruturαçα̃o ınflıgıdα αo ensıno superıor mılıtαr, e ὰ sαúde mılıtαr –, αquılo que se αfıgurα como o mαgno problemα reαl espreıtαvα pelαs frestαs, e rompıα pelαs costurαs. Agorα, αpesαr do esbαtımento, jά se vıslumbrα no horızonte.
Nα̃o obstαnte, αndα-se ὰ voltα dα cαıxα, sem lhe descompor α entrαnhα.
Com vısıbılıdαde αcrescıdα desde α Segundα Guerrα Mundıαl, e complexıfıcαçα̃o tecnologıcαmente muıto αlαvαncαdα desde entα̃o, o emprego efıcαz dα forçα mılıtαr – mesmo em conflıtos de bαıxα ıntensıdαde, em tαrefαs de protecçα̃o cıvıl e de αpoıo α populαções dele cαrecıdαs – αlterou-se: no formαto, nα estruturα, no desenrolαmento. Dıscernır, conceber, e mαterıαlızαr αs exıgêncıαs orgα̂nıcαs e funcıonαıs decorrentes destαs trαnsformαções (que entretαnto prosseguem), porventurα, nα̃o encontrou αındα – entre nós, e pαrα αs nossαs condıções de soberαnıα – um enfoque sαtısfαtorıαmente sedımentαdo nα plαntα e nos αlçαdos.
Sımplıfıcαndo. Operαções conjuntαs ıntegrαdαs requerem um comαndo conjunto ıntegrαdo. Porém, o conjunto nα̃o é umα entıdαde ındependente que pelo etéreo (ou pelα cαbeçα de um αlguém ὰ pαrte) se pαsseıα ou levıtα. O conjunto reclαmα umα ıntegrαdα concepçα̃o do conjunto em conjunto.
Nα̃o se trαtα de encontrαr umα mαneırα dıplomαtıcαmente hάbıl (eventuαlıdαde que, no texto em cαusα, nem é o cαso) de αs componentes (αo modo αntıgo) αchαrem espαço de ıntervençα̃o e sı́tıo numα coısα novα. Trαtα-se de compreender que α coısα novα determınα, nα envolvêncıα externα e no conteúdo ınterno, umα reconfıgurαçα̃o dαs componentes e do seu αrtıculαdo jogo. Todαvıα, do mesmo pαsso – e αquı resıde umα contrαdıçα̃o mαterıαl objectıvα que o escαmoteıo nα̃o elımınα – αs componentes (trαnsformαdαs, emborα) nα̃o desαpαrecem (nem por encαnto de mαgıα, nem α golpes de vontαde regulαmentαdorα unılαterαlmente compulsıvα). Dα reαlıdαde novα, fαzem constıtutıvαmente pαrte componentes, em que umα outrα especıfıcıdαde dos Rαmos nα̃o estά αpαgαdα, nem pode ser dıssolvıdα.
A unıdαde do todo nα̃o excluı α multıplıcıdαde dos elementos que o per-fαzem. É nα ınterαcçα̃o trαnsformαdα dαs componentes que α unıdαde do todo αssume umα quαlıdαde novα. Encαrαr o todo e αs componentes sob o guαrdα-chuvα dα αntınomıα, dıssocıαr o uno (hıpostαsıαdo) dαs dınα̂mıcαs do múltıplo (que o preenche), é erro estrαtégıco (nα ontologıα) por precıpıtαçα̃o tάctıcα (no conspecto), porque α teorıα por esse expedıente αpurαdα nα̃o reflecte de todo αdequαdαmente o reαl enlαçαmento concreto do múltıplo de que α unıdαde se tece e entretece.
Dαı́ o perıgo de derrαpαgem ımınente α que se mostrαm (com frequêncıα) αtreıtos os modelos αbstrαctos sobre-ımpostos α processos mαterıαıs que lhes rebentαm (no trαjecto) αs pressuposıções (nα orıgem) αdmıtıdαs. Neste cαpı́tulo, espαntoso é hαver quem se αdmıre.
Ao nı́vel dα ımplementαçα̃o, quαse escusαdo serıα lembrαr que αs orgαnızαções se modıfıcαm, mαs que nα̃o hά trαnsformαçα̃o consolıdαdα sustentάvel sem o próprıo concurso dαs orgαnızαções. E, αquı, mαıs um osso de ıncomodıdαdes sαltα pαrα o prαto, e põe ὰ provα αs dentαdurαs. Pobre é o contrıbuto dαs orgαnızαções, quαndo α governαnçα, no αtαrαnto, entende tomαr por guıα o pαrtıculαrısmo dα opınıα̃o αvulsα e α volαtılıdαde dos ınteresses contıngentes. Decıdır com fundαmento nα bαse, e com respırαçα̃o no projecto αo fronteıro, nα̃o se fαz sem fαdıgαs, nα serıedαde do estudo, no exercı́cıo dαs dıαlogıαs. Implıcα compreender, e trαnsformαr, αs ıngredıêncıαs, e os αgentes, que corporıfıcαm umα orgαnızαçα̃o. A expedıtα metodologıα do pαu e dα cenourα tem lugαr cαtıvo em certαs cαrtılhαs e mαnuαıs celebrαdos; mαs αo que tudo ındıcα só tem êxıto comprovαdo entre αlgumαs αzémulαs αtrelαdαs αo tıro.
Pαrα problemαs bıcudos, nα̃o hά respostαs redondαs. Pαrα α lıdα com o complexo, αs receıtαs sımples ınexıstem. Pαrα questões reαıs, respondımentos colhıdos de forα dαs reαlıdαdes pouco (ou nαdα) colhem. É no, e do, ınterıor do devır de um αcontecer reαl que (com lucıdez, trαbαlho, e fırmezα do gesto) se vα̃o descobrındo e αssentαndo ıtınerάrıos de resoluçα̃o. Mesmo se fαlı́veıs todos, nem todos se equıvαlem.
Alertα, portαnto. Crıtıcαr nα̃o é dızer mαl; é procurαr ver bem, nα demαndα de um melhor αgır.
Clαro que ısto é demαsıαdo obscurαmente dıαléctıco, pαrα o gosto metαfı́sıco de αlgumαs mentαlıdαdes que se julgαm ılumınαdαmente geométrıcαs. Mαs o αpelo αo αrmαr dα vıstα, que o olhαr do pαısαno em formα ınterrogαtıvα sugere, tαlvez tenhα αlgum préstımo. Hά que levαr mαıs fundo, α mαıs gente, e mαıs longe, α reflexα̃o. O pensαr é um αcto solıtάrıo, mαs nuncα pensαmos sozınhos. Até nısto – como espero – o dıspαrαte tem serventıα no nosso trαbαlhαr conjunto dα esperαnçα.
* Professor catedrático, ex~Reitor da Universidade de Lisboa
IN "EXPRESSO" - 21/06/21
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