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Dando ao mundo
o espetáculo de existir!
Temos que considerar que Ramalho Ortigão foi um visionário ao antever a situação de Portugal com mais de 100 anos de antecedência, distribuindo aos políticos de hoje as mesmas farpas com que mimoseava os do seu tempo
“A República Portuguesa continua dando ao mundo o mais espantoso e inacreditável espetáculo-existe…”!
“…O que urge, o que urge…é passarmos imediatamente a nomear o pessoal dirigente e o corpo governativo, distribuindo os altos cargos do Estado, com os seus concernentes benesses, pelos nossos amigos íntimos e por nós mesmos, como pede a justiça…”.
“…Enquanto eu empunho as rédeas do Governo, confio-vos todas as províncias da pública administração, dando-vos plena liberdade de mando com a cláusula única de nunca procederdes senão debaixo das minhas ordens, acatando-as submissamente, quer eu haja por bem dar-vo-las de viva voz, por escrito, por gestos ou por simples jogo de fisionomia…’’.
Temos que considerar que Ramalho Ortigão foi um visionário ao antever a situação de Portugal com mais de 100 anos de antecedência, distribuindo aos políticos de hoje as mesmas farpas com que mimoseava os do seu tempo. Porventura foi até parcimonioso, ao não estender o banquete a cônjuges e filhos, e também aos amigos de ocasião, os boys emergentes ávidos das benesses do poder e liberdade de mando, à custa da submissão às ordens do chefe.
Todavia, quanto ao nível de competência de uma classe assim promovida e nutrida, também Ramalho nos deixou o aviso: “Quando vemos que as mais altas e importantes questões ninguém mais as discute nem as elucida na esfera competente, que querem que julguemos senão que essa esfera na sociedade portuguesa está arrefecida, desabitada, e não é mais que um pobre planeta exausto, morto, inútil, perdido nas solidões do espaço?”.
Não alcançou todavia Ramalho a majestade das altas e importantes questões que as mentes dessa esplendorosa elite vêm lançando para a reflexão pública.
Debates decisivos para o nosso futuro coletivo vão passando pelo limite aceitável do piropo e da sua fronteira com o assédio, pela defesa extremada da energia limpa, mas proibindo a mineração que a condiciona, ou pelo desenvolvimento económico e social, mas ostracizando empresas e iniciativa. Ou até pela pendência que atinge o próprio Cartão do Cidadão, por “não respeitar a identidade de género de mais de metade da população portuguesa”, devendo por isso “ter uma formulação que responda ao mais profundo respeito pela igualdade de direitos entre homens e mulheres”.
Os temas fraturantes e do politicamente correto tornaram-se dominantes. E, não sendo já a natureza que decide onde começam e acabam o “masculino e o feminino” ou a nova categoria “intersexo”, cabe a cada ser humano a decisão da sua identidade, que até pode ser múltipla. Um desfecho que fez entrar em crise a própria sigla LGBT, por não ser inclusiva de todas as outras categorias relacionadas, ficando indefinido, por mero exemplo, se a elas se estenderia o direito das mulheres lésbicas ao acesso a técnicas de fertilidade. E se o acrescento do sinal + à sigla inicial, reformulando-a para LGBT+, permitiu algumas tréguas, não abrandou o debate, por menorizar todos os restantes géneros, reduzindo-os a um mero sinal aritmético.
E enquanto as elites se enredam nestas questões, tão excelsas que enchem as agendas ministeriais, as atas das sessões e as páginas da comunicação social, foi a República intervencionada pelo FMI em 1977 e 1983, chegou à bancarrota em 2011 e é constantemente ultrapassada por outras não há muito economicamente bem distantes. Essa mesma República, governada por amigos e parentes, que nomeia uma Comissão full time para, durante 3 anos, preparar as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e, durante 2 anos e 8 meses, para as liquidar, um espanto!
Nunca Ramalho terá pensado que as elites políticas viessem a tornar tão viva e real a figura de estilo usada na caracterização do país, um pobre planeta exausto, morto e inútil.
Mas Ramalho tinha razão: afinal é essa mesma República que continua dando ao mundo o espetáculo de existir! A expensas alheias, pode-se juntar.
* Economista e Gestor - Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
IN "i" - 18/06/21
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