.
Foram os jornais regionais, sobretudo os católicos, que eram bastantes à época, que mais espaço dedicaram à história dos três pastorinhos que diziam ter visto Nossa Senhora numa azinheira da Cova da Iria, quando rezavam o terço, e às polémicas. Os jornais nacionais também deram notícias, mas poucas... A primeira saiu em 23 de julho de 1917, em "O Século". Eis um levantamento exaustivo dos artigos publicados.
Na página 4, cheia de anúncios, um pequeno quadrado sobressai. O título é “135917”, um número que mais tarde será identificado pela historiadora Fina d'Armada com a data da primeira dita aparição de Nossa Senhora na Cova da Iria, a 13 de maio de 1917. O texto, assinado por A. e C., reza assim: “Não esqueças o dia feliz com que findará o nosso martírio. A guerra que nos fazem terminará”. O anúncio representa uma mensagem recebida numa sessão espírita realizada em fevereiro e terá sido pago por crentes no espiritismo na “moda” no princípio do século, do grupo de Carlos Maria Ferreira Calderon, compositor, maestro e empresário e grande entusiasta deste culto.
Quase 100 anos depois, ao mesmo “Diário de Notícias”, o diretor do Serviço de Estudos e Difusão do Santuário de Fátima, Marco Daniel Duarte, depois de afirmar tratar-se “de uma linguagem típica da cultura espírita”, refere que “para a história das mentalidades seria importante perceber este tipo de frases, mais ou menos comuns nos jornais dos inícios do século XX, no contexto do surgimento destas correntes de pensamento que ao longo do século XIX e inícios do XX também ganharam adeptos em Portugal”.
Para este artigo sobre o anúncio, o jornalista João Céu e Silva falou também com o historiador Luís Filipe Torgal, autor do livro “O Sol Bailou ao meio-dia”, resultante da sua tese de mestrado de 2002, para quem “a Guerra é a essência da Mensagem de Fátima, tudo o resto é uma construção posterior, como é o caso da mensagem anticomunista, que só se sabe nos anos 30”.
“Vejo-o, registo-o e integro-o como mais uma entre as diversas notícias sobre a Guerra, mas mais do que isso não. É difícil retirar daí uma interpretação e creio que ninguém o conseguirá”, disse o historiador, concluindo: “É uma coincidência e o mundo está cheia delas”.
Jornal de Notícias, Primeiro de Janeiro,
A Liberdade 13 de maio
Novo anúncio que se diz ter sido pago pelos mesmos grupos de espíritas. O título é “Revelação sensacional” e reproduz o mesmo aviso, por outras palavras: “No dia treze do corrente, há de dar-se um facto, a respeito da guerra, que impressionará fortemente toda a gente”.
A Ordem, 9 de junho
Ainda antes de qualquer notícia sobre Fátima, apareceu primeiro uma nota no jornal “A Ordem” sobre uma suposta aparição a 10 de maio, no lugar do Barral, freguesia de São João de Vila Chã, concelho de Ponte da Barca. Um pastor de 10 anos afirmara ter-se deparado com “uma senhora” numa ramada, quando ia a caminho do monte. Tal como os pastorinhos de Fátima contarão, Severino Alves disse ter visto primeiro um relâmpago. E depois uma senhora, “sentada, com as mãos postas, tendo o dedo maior da mão direita destacado, em determinada direção. O seu rosto era lindo como nenhum outro, toda Ela cheia de luz e esplendor, de maneira a confundir a vista, cobrindo-lhe a cabeça um manto azul, e o resto do corpo um vestido branco”. O miúdo terá “caído para o lado” com a surpresa e quando se levantou só teve tempo de dizer “Jesus Cristo” antes do “desaparecimento da visão”.
Na notícia refere-se ainda que, no dia seguinte, 11 de maio, Severino foi ao local, à mesma hora, mas já preparado pelo seu pároco, a quem logo terá contado do sucedido, para enfrentar a figura. Ao ver de novo a dita senhora, ajoelhou-se e disse: “Quem falou ontem fale hoje”. Perante a firmeza da frase, “a Aparição com uma voz que era um misto de rir e cantar, diferente do falar de todos os mortais que tem visto, tranquilizou-o dizendo-lhe: ‘Não te assustes. Sou Eu, menino. E acrescentou: ‘Dize aos pastores do monte que rezem sempre o terço, e que os homens e mulheres cantem a Estrela do Céu. E as Mães que têm filhos lá fora, que rezem o terço, cantem a Estrela do Céu e se apeguem comigo, que hei-de acudir ao Mundo e aplacar a guerra”.
“A criança, apesar da sua extrema pobreza, tem uma aparência sadia, sem aspeto e antecedentes nervosos que permitam supor que fosse uma alucinação, aliás repetida. É uma criança que é considerada na freguesia, gozando fama de verdadeira, e não mentirosa”, afirma o jornal católico, fundado pelo padre António José Soares Pacheco, em 1913, no Porto, e que ainda hoje se publica, tendo passado de semanário a quinzenário.
João Semana, 1 de julho
O semanário (em 1975 passou a quinzenário) fundado em 1914, pelos Padres Lírio e José Ribeiro de Araújo, com o objetivo de defender a igreja católica dos “ataques” dos republicanos mais aguerridos, replica a notícia de “A Ordem” sobre o caso passado com o pastor, “filho duma pobre e virtuosa viúva”, com a seguinte introdução: "Tem-se ultimamente ocupado a imprensa católica de um facto que, a ser verdadeiro, tem importância incontestável”. E afirma ainda que, no Barral, “é intensíssima a devoção à Santíssima Virgem, cujo terço toda a gente traz ao pescoço”.
João Semana, 8 de julho
O “J. S.” volta à notícia da suposta aparição no Barral, a propósito da antífona (versículo que precede o salmo, que, por sua vez, é um hino sacro católico) “Estrela do Céu”. A oração era habitualmente cantada na freguesia de São João de Vila Chã em épocas de calamidade ou de guerra. Nos dias 15 e 22, o jornal voltará ao assunto. Depois de terem recorrido sem resultado a toda a gente moça, recorreram a uma velha habitante do lugar que a “trauteou como pôde", explica, com base nestas notícias, o santuário erguido no local.
"O Reverendo Abade da Freguesia informou na altura que tal oração era usada na freguesia há uns quarenta e tal anos, pois, tendo o pároco 61 anos, lembrava-se dela quando criança, mas pôde garantir que desde então e até às Aparições ninguém nela falava, e muito menos era usada na freguesia. O pároco referiu ainda que este facto foi um dos que o levou a acreditar na história do rapazinho, pois nem este nem a sua mãe teriam conhecimento da existência dessa oração. Isto faz com que o pároco acredite que há verdade nas declarações do rapaz acerca da Aparição", lê-se na página oficial do Santuário de Nossa Senhora da Paz.
O Século, 23 de julho
Surge a primeira notícia sobre o caso da Cova da Iria num jornal de âmbito nacional. É o correspondente do jornal "O Século" na Meia Via, Torres Nova. O "despacho", como chamavam às peças vindas de fora da redação, data de 21 de julho, uma semana depois da terceira aparição. O que levou Artur Gonçalves (terá sido este republicano a escrevê-lo, já que foi correspondente do jornal com sede em Lisboa, mas com uma desenvolvida rede de informadores pelo país fora) a dedicar alguma atenção ao assunto, embora morasse a cerca de 25 quilómetros de Fátima, foi o o facto de correr com insistência na povoação "o boato de que num determinado ponto da serra de Aire apareceria no dia 13 do corrente a mãe de Jesus Cristo a duas criancinhas, a quem já por diversas vezes tinha aparecido, e no mesmo local". E conta que "o acontecimento foi tão empolgante que, em Torres Novas, vila, como todos sabem, abundante em alquilarias, no referido dia não se encontrava sequer um carro para alugar, chegando mesmo a fechar bastantes estabelecimentos". Nesse dia, data da dita terceira aparição, os "numerosos" torrienses mais curiosos, na sua maioria religiosos, regressaram a casa por volta das duas da tarde "entoando cânticos e hinos à Virgem e soltando alguns vivas". A seguir reproduz a conversa que teve, já no dia 14, com uma emotiva "mulherzinha" que esteve entre as milhares de pessoas que viram, logo a seguir a "um ruído semelhante ao ribombar do trovão", as "duas crianças, que estavam junto duma carrasqueira circundada por muitas florinhas, creio que paradisíacas, irromperam num choro aflitivo, fazendo gestos epiléticos e caindo depois em êxtase".
"A uma delas, a que tinha o privilégio de ouvir e ver a santa, fizeram várias pessoas muitas perguntas, às quais respondia dizendo que via uma espécie de boneca muito bonita, que lhe falava. Tinha, dizia, um resplendor em torno da cabeça e chamava-a para junto de si, numa voz muito fininha e melodiosa. Entre muitas coisas que lhe disse, a principal foi anunciar-lhe a sua reaparição do dia 13 a um mês e no mesmo sítio, aparecendo ainda mais outra, para declarar o motivo por que tinha vindo ao mundo", descreveu a citada mulher, "sincera e verdadeira", cuja versão foi corroborada por outras pessoas, ao correspondente, para quem o caso parecia "extremamente irrisório" e tratava-se, na certa, duma premeditada especulação financeira, cuja fonte de receita existe nas entranhas da serra, em qualquer manancial de águas minerais que recentemente tenha descoberto algum indivíduo astucioso que, à sombra da religião, quer transformar a serra de Aire numa estância miraculosa como a velha Lourdes. As autoridades já tomaram conta do caso, e, se ainda o ignoram, servir-lhe-á o comentário de aviso".
O Mensageiro, 22 de agosto
O jornal católico leiriense, fundado em 1914 pelo padre José Ferreira de Lacerda com o intuito de restaurar a diocese de Leiria, replica o artigo do diário “O Século” de dia 23, apenas mudando o título para “Aparição miraculosa?”.
João Semana, 29 de julho
Volta ao assunto e afirma que a autoridade eclesiástica iniciou o processo e que, enquanto o arcipreste local concluía pela veracidade dos factos, milhares de pessoas citavam milagres e deslocavam-se ao Barral, segundo lembrou em 1977 no mesmo jornal o padre Manuel Pires Bastos no artigo “Fátima na Imprensa Vareira – Há 60 anos: o 'milagre do sol'”. Anos mais tarde, “o probo historiador e professor universitário padre Avelino de Jesus Costa [natural de Vila Chã e à data com 19 anos], que se debruçou sobre o assunto, admite a veracidade dos factos”, adianta Pires Bastos, pároco de Ovar e atual diretor do quinzenário.
O Ouriense, 29 de julho
“Real aparição ou suposta… ilusão” é o nome do artigo que o periódico de Ourém publica, o primeiro texto feito de raiz por um jornal regional, segundo o Luís Miguel Ribeiro Ferraz. A peça está escrita “num tom menos céptico quanto à veracidade dos factos, apesar de não a afirmar directamente, mas assumindo uma postura maravilhada e algo esperançosa de que a ‘Rainha dos Anjos’ possa vir a ‘fazer desta freguesia uma segunda Lourdes’” e dá conta “dos milhares de pessoas que tinham acorrido a esta freguesia para ver as referidas aparições”. O autor refere não ter sido testemunha, mas ter ouvido relatos, e conclui: “Foi simplesmente admirável, por ora mais nada digo”, anota o historiador na sua tese de mestrado “As aparições de Fátima e o seu impacto local (1917-1927), uma ‘leitura histórica-teológica a partir do semanário O Mensageiro’”, concluída em 2012.
O Mundo, 18 de agosto
Pela primeira vez, o diário dos republicanos mais radicais, dedica um artigo ao assunto, com o título "Impostores". Que começa assim: "Em pleno século XX existem impostores que nada ficam a dever, na charlatanice audaciosa, ao célebre José Balsamo, mais conhecido por conde de Cagliostro". Entre outras tropelias feitas por este italiano do século XVIII, que esteve em Portugal e acabou preso na Bastilha e expulso de França por causa de um colar (envolveu-se no célebre caso do colar da rainha, um dos que levou à revolução francesa), conta-se o facto de fazer reuniões com fiéis, fazia com as crianças... vissem aparições místicas".
Giuseppe Giovanni Battista Vincenzo Pietro Antonio Matteo Balsamo era, segundo o mordaz "O Mundo", um "milagreiro, curava todas as maleitas com uns pozinhos, dava vista aos cegos, descobria tesouros, falava em segredo com o padre eterno, adivinhava o futuro e transformava os mais vis metais em outro puro". E "passou por santo, por eleito de Deus, quando não era, afinal, mais do que um refinado velhaquete, um bandido da pior espécie. Vendia a mulher, que era formosa, como se fosse uma mercadoria de praça pública. Entrou e saiu das cadeias vezes sem conto".
"Esse José Balsamo da serra de Aires deve ser o mesmo, ou
seu comparsa, que fazia aparecer santas em Monção e ali para as bandas
de Aveiro. A raça dos impostores, que é à custa da religião e das
crenças católicas de certo povo bisonho tem exercido a sua industria
através dos tempos, ainda não acabou. E é só sob esta união sagrada que
os inimigos da Pátria e da República tanto odeiam, que com ousadia
extreme os impostores vão praticando sem punições todas essas proezas de
estupidez e de cegueira", comenta o jornal, concluindo: "Abra o povo os
olhos e corra a chicote os charlatões que negoceiam com a sua crença
religiosa".
O Mundo, 19 de agosto
"A burla das Verdades” é o segundo artigo do periódico dirigido por dedicado a Fátima. O nome diz tudo, o texto segue a linha do anterior e de outros (poucos) que ainda irá publicar.
O Mensageiro, 22 de agosto
O jornal publica uma carta do padre Manuel Marques Ferreira, que foi o primeiro a interrogar Lúcia, poucos dias depois, desde a primeira até à última dita aparição. O pároco de Fátima vem, "com toda a repulsão do coração de padre católico", defender-se da suspeita de ter sido cúmplice no brusco arrebatamento das criancinhas, que dizem ver Nossa Senhora nesta freguesia, à autoridade de seus pais e à satisfação que desejavam as 5 a 6 000 pessoas (segundo os cálculos) que, muitas à distância de tantas léguas e com enormes sacrifícios, vieram para as ver, falar e ouvir falar".
O Ouriense, 25 de agosto
Publica a carta do padre Manuel Marques Ferreira igual à que saíra três dias antes em "O Mensageiro" e neste mesmo dia no jornal "A Ordem". Dizem os investigadores que compilaram a "Documentação Crítica de Fátima" que "entre as três redações, não existe diferença essencial", notando-se "no pároco uma preocupação de adaptar cada carta à publicação a que era destinada". No caso de "O Ouriense", a diferença está "no post scriptum": "Chegou no dia 15, a autoridade com as crianças a minha casa, onde se ajuntaram os pais das mesmas e muitas outras pessoas perante as quais pretendeu com todas as amabilidades explicar o seu modo de proceder".
A Ordem, 25 de agosto
Surge também a carta do padre Manuel Marques Ferreira que já publicada em "O Mensageiro" e, neste mesmo dia, em "O Ouriense".
O Mensageiro, 29 de agosto
“Recomendações oportunas – Uma proibição do bispo de Orleans” que não são mais do que um aviso: é preciso ter cuidado com as aparições e ter em conta a proibição de os padres falarem sobre esse género de acontecimentos, principalmente em tempo de guerra.
O Mensageiro, 27 de setembro
Publica um despacho de Alcobaça, dando conta de que “foi daqui grande concorrência de povo a Fátima afim de observar as muitas coisas que se têm dito sobre a suposta aparição de Nossa Senhora naqueles sítios”.
O Mensageiro, 11 de outubro
Publica o anúncio a uma estampa de “Nossa Senhora da Paz (Recordação da Fátima)”, sem imagem da mesma, mas com o comentário: “Linda estampa para quadro, remete-se pelo correio a quem enviar 50 réis em estampilhas. Faz-se desconto para grandes quantidades. Vendem-se na Imprensa Comercial, à Sé”.
Diário de Notícias, 11 de outubro
Duas notícias. Uma em que resume o acontecimento de "quinta-feira de ascenção", dizendo que apareceu "uma visão" a umas criancinhas que andavam a guardar gado, quando estas rezavam o terço. E que os avisou que iria aparecer mais seis meses, sempre a dia 13. "No mês passado, o número das pessoas que aquela localidade foi com esse intuito [de "assistir ao colóquio da visão com as inocentes crianças"] era superior a 20 mil".
Na outra, profética, dirigida ao clero, faz referência à especulação comercial do caso: "E também há quem, a par de uma ampla e sumptuosa igreja constantemente repleta, imagine ver levantados vastos hotéis com todos os confortos modernos, bem fornecidas lojas atulhadas de mil e um objetos de piedade, comemorativos da Senhora de Fátima, e construído um ramal de caminho de ferro que nos conduza ao futuro miraculoso santuário com mais comodidade do que as traquitanas que para lá acarretam agora a maioria dos fiéis e dos curiosos".
O Século, 15 de outubro
O jornal republicano dá a primeira página à reportagem que se tornará peça incontornável quando se fala do acontecimento que envolveu três pastorinhos de Fátima, a Igreja e que se tornou num fenómeno de turismo religioso em termos mundiais. O autor da prosa, cujo título é "Como o sol bailou ao meio dia em Fátima", debaixo do subtítulo "Coisas espantosas" (conjunto que dá o tom À prosa), é o jornalista é Avelino de Almeida, que também foi critico de teatro e escreveu para "A Capital" e para a revista católica "A Lanterna". A reportagem é sobejamente conhecida, a primeira parte é a descrição dos milhares de crentes e não crentes, da multidão que aglomera, da atmosfera carrega de nuvens cinzentas e chuva.
Perto da hora marcada (que é o meio-dia, embora devido à recém mudança da hora, já são 13h, mas a "hora antiga é a que regula a multidão"), "talvez meia hora antes da indicada como sendo a da aparição", chegam as crianças. "Conduzem as rapariguinhas, coroadas de capelas de flores, ao sitio em que se levanta o pórtico. A chuva cai incessantemente mas ninguém desespera. Carros com retardatários chegam à estrada. Grupos de freis ajoelham na lama e a Lucia pede-lhes, ordena que fechem os chapéus. Transmite-se a ordem, que é obedecida de pronto, sem a mínima relutância. Ha gente, muita gente, como que em êxtase; gente comovida, em cujos lábios secos a prece paralisou; gente pasmada, com as mãos postas e os olhos borbulhantes; gente que parece sentir, tocar o sobrenatural…"
E prossegue com o fenómeno ao qual também assistiu. Para concluir: "Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro bailado do sol que hoje, em Fátima, fez explodir hosanas dos peitos dos fiéis e deixou naturalmente impressionados – ao que me asseguraram sujeitos fidedignos – os livres pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acorreram à já agora celebrada charneca".
Diário de Notícias, 15 de outubro
Num despacho de Vila Nova de Ourém, datado de 13, o diário lisboeta de âmbito nacional conta o acontecimento do dia 13 de um modo menos empolgante que o seu concorrente “O Século”.
O jornal, quanto à afluência à Cova da Iria, fala em “extraordinário número de pessoas” e, para se fazer uma melhor ideia, dá uma nota dos veículos que passaram por Ourém: “carros, 240; bicicletas, 135; automóveis para cima de 100”. E diz que à hora marcada, pelas 13h, com a chegada das três crianças, que logo se postaram de joelhos, junto a um altar ali improvisado, a “sugestão tomou imediatamente aqueles milhares de crentes e curiosos. Como grande número de pessoas tivesse os guarda-chuvas abertos [chovia desde manhã], os pequenos mandaram fechá-los e, coisa estranha, segundo o testemunho de milhares e milhares de pessoas, o sol apareceu com uma cor de prata fosca, numa agitação circular como se fosse tocado pela eletricidade, segundo a expressão empregada por pessoas ilustradas que presenciaram o facto”. E, entre outros pormenores, adianta: “A sugestão destes videntes estendia-se a outros a quem eles explicavam o fenómeno e, por esse motivo, muitos pregando que o astro real viria precipitar-se no solo, romperam em altos gritos, impetrando a proteção da Virgem”.
O Mensageiro, 18 de outubro
É neste dia, segundo o historiador Luís Miguel Ferraz, que analisou o comportamento deste periódico face ao fenómeno, que o jornal “muda radicalmente a sua abordagem” e publica na primeira página uma carta de Carlos Silva, que diz ter presenciado os acontecimentos e não ser “jesuíta nem fanático da religião”, mas estava maravilhado com “o que se passou de extraordinário nos astros que os astrónomos o não anunciaram” e com o facto de “duas pastorinhas” levarem “tantos milhares de pessoas a um ermo só para ver o Sol”. O jornal, apesar de continuar a aguardar uma palavra da Igreja sobre o assunto, passa a admitir que as três crianças, “os videntes, não podiam, rudes e ignorantes, mistificar por tal forma as dezenas de milhares de assistentes”. Acrescentando: “Ainda se este facto se desse ficaria o fenómeno solar, que a ciência não previu, e cremos não explicará, demonstrando que no caso de Fátima há alguma coisa de extraordinário que não compreendemos”.
O Dia, 19 de outubro
Maria Madalena de Martel Patrício, católica, poetisa, que contará com 14 nomeações para o Prémio Nobel, entre 1934 e 1947, ano da sua morte, escreve a prosa poética “Impressões de Fátima”, assinando como era seu hábito Maria Magdalena. “Despovoaram-se os lugares, as aldeias, as cidades próximas...” começa para em seguida descrever a região e o ambiente atmosférico, num dia em que “a chuva caía, caía, macia e teimosa”. Para se ter uma ideia, ficam aqui dois parágrafos: “Operários da Marinha, lavradores de Monte Real, das Cortes, dos Marrazes, serranas de longe – das serras do Soubio, de Minde, de Louriçal, gente de toda a parte onde chegasse a voz do Milagre, deixavam as casas e os campos e vinham por ali fora cavalo, de carro ou a pé cruzando as estradas, atravessando montes e pinhais, de longa pelos caminhos que durante dois dias se animaram do rodar dos carros, do chouto dos jumentos, do vozear dos grupos dos romeiros. Caminhavam sempre subindo a serra iluminados pela fé, na ânsia do milagre que Nossa senhora prometera, no dia 13, pela uma hora, hora do sol, às almas simples e puras de três crianças que apascentavam gados!”. O texto será reproduzido na edição de "O Mensageiro" de 25 de outubro.
A Beira Baixa, 20 de outubro
Traz uma reflexão sobre o assunto.“Não sabemos nem nos cumpre a nós pronunciar-nos sobre tão melindroso assunto”, escreveu o jornal, embora reconhecendo, como refere Luis Ferraz, que “o poder de Deus é infinito, os milagres têm-se dado, podem dar-se e repetir-se”. E conclui o regional: “À autoridade eclesiástica cumpre pronunciar-se sobre o ocorrido com aquela ponderação que emprega sempre em casos idênticos. Enquanto isso se não der, nós, sem pormos em dúvida o que milhares de pessoas afirmam ter visto (porque isso seria negar a evidência), não diremos que houve milagre nem que o não houve. Somos filhos da Igreja e submeter-nos-emos ao que a este respeito for dito pelos seus legítimos representantes. Nem precipitados nem contumazes”.
O Século Cómico, 22 de outubro
É a primeira das pelo menos três vezes que se refere ao assunto, o suplemento humorístico do jornal “O Século”, cujo editor é Alexandre Augusto Ramos Certã, que será reconhecido legalmente como revolucionário civil de 5 de Outubro de 1910, dia da implantação da República, em que participou como maqueiro e, por isso, foi agraciado com a medalha de cobre da Cruz Vermelha. Assinado por J. Neutral, a “palestra amena” intitulada “A aparição da Virgem” é de refinada ironia e bom humor cético. O autor diz que em setembro e outubro andou “veraneando não longe do local”, mas não teve curiosidade alguma, preferindo conservar-se na sua “habitual indiferença, como se a aparição da mãe de Jesus Cristo fosse”, para si, “a coisa mais natural do mundo”, muito embora tivesse visto passar rumo à charneca “centos, milhares talvez, de peregrinos: crentes, curiosos, amadores de ‘picnics’, vendedores de água fresca e capilé, ‘reporters’, negociantes de vinho a retalho, uma variada e interessante multidão”. Todos movidos por um motivo “em absoluto coerente e de modo algum revelador de desequilíbrios de faculdades”.
Embora entre aqueles que ocorreram ao “arraial” os mais estranhos pudessem ser os que acreditavam na aparição e as que diziam ter visto a Virgem Maria, para Neutral justificava-se a crença: “Então não se acredita, por exemplo, que há ministros que fazem milagrosamente desaparecer um ‘deficit’ orçamental com uma simples penada, que outros se fossem ao poder fariam descer imediatamente os preços dos géneros até à normalidade, etc. Fanáticos há-os em toda a parte e em todos os sentidos, desde o que fala com a Virgem Maria nos penhascos de Fátima até aos que têm por infalíveis as predições do sr. António José de Almeida”, na altura ministro das Finanças e futuro Presidente da República (o sexto).
A Capital, 24 de outubro
Com o antetítulo “Naturismo” e o título “Sol d'Outono”, o diário da noite publica um texto do doutor Amilcar de Sousa, para quem o naturismo “é uma religião e uma terapêutica; uma higiene e uma fé”. O fundador da Sociedade Vegetariana de Portugal, em 1908, não toca nos acontecimentos de Fátima, mas aproveita para fazer um elogio ao sol, astro de “apetecedor enlevo e de saboroso anseio” e dando o seu exemplo, médico que toma o mesmo remédio que receita aos seus doentes, interroga-se: “Onde está um sacerdote que pratique o que manda fazer aos fiéis?”. Isto porque, como explica, no local onde reside, no Campo Pequeno, em Lisboa, num sanatório para tratar doentes agudos e crónicos, há um retiro próprio para adorar o sol - “é um dos poucos sítios neste país onde se pode exercer o culto ao deus da energia, da vontade e da força”. Todos os dias de manhã, Amilcar de Sousa toma sol. “E não estou só. Alguns doentes me acompanham no devocionário, para se tratarem. O médico faz aos enfermos o tratamento que ele mesmo usa. O médico vive ainda n’um mais estreito Âmbito dietético, mais apertado regime", explica.
“Quem não tenha forte crença - também se não cura. Eu creio no Sol. Eu amo os ventos. Eu creio no poder da Natureza. Eu louvo a água, o exercício, as plantas! Ao sol d’oiro e de fulgor teço as venturas mais dedicadas. É ele que me faz viver, que me anime, que me dá energia, que me manda até continuar no caminho da verdade", conclui.
Diário de Notícias, 24 de outubro
“Durante a noite de ontem, algumas pessoas que se fizeram transportar num automóvel a Fátima foram ao local onde se deu o tão afamado fenómeno do dia treze do corrente mês, e de que tanto a imprensa se tem ocupado e, munidos dum machado, cortaram a carvalheira, sob a qual as três crianças (pastoras) se apresentaram naquele dia”, noticia, acrescentando que os mesmos levaram consigo a árvore, “assim como uma mesa, sobre a qual alguns crentes haviam armado um modesto altar, onde foi encontrada a fotografia duma imagem religiosa (Nossa Senhora), um arco que a encimava, feito de rama de murteira, duas lanternas de folha, duas cruzes, sendo uma de madeira e outra de cana, envolta em papéis de seda”.
O correspondente de Santarém, autor da peça, adianta que todos os objetos, incluindo dois vasos com plantas, se encontravam expostos na cidade, num primeiro andar do largo do Seminário, desde as nove horas da manhã. “O caso deve ter produzido grande sensação no espírito dos crentes e bons católicos da Fátima e suas cercanias. Constou que iam ser pagas as entradas para a visita aos ramos da árvore e imagens e que o apuro reverteria em benefício das Cantinas Escolares desta cidade, mas sabemos que a direção desta instituição de caridade recusa qualquer quantia que daí provenha”, conclui.
O Mensageiro, 25 de outubro
Toda a primeira página é dedicada ao fenómeno da Cova da Iria, com exceção de duas pequenas notícias, uma sobre as eleições no concelho de Leiria, previstas para os dias 4 e 11 de novembro e às quais concorrem os católicos aliados aos monárquicos contra os vários partidos republicanos; e outra sobre a fundação de mais um centro católico, desta feita na freguesia de Chãos, concelho de Ferreira do Zêzere. E ainda meia coluna de agradecimentos pelas felicitações recebidas no dia do seu terceiro aniversário.
Em duas colunas de alto a baixo, reproduz o artigo publicado em “O Dia” de 19 de outubro. Em meia coluna, replica um “recorte” de uma entrevista ao astrónomo Frederico Oom publicada no “Diário Nacional” que, por sua vez, já a copiara de o jornal “O Século”. No caso, apenas replica a parte que refere a ausência de registo de qualquer fenómeno nos observatórios astronómicos e meteorológicos, para argumentar contra os "infelizes artigos" de Domingos Pinto Coelho que “tão desagradável impressão produziram nos meios católicos”. Ao lado, por alguém que assina Ignotus, surge coluna e meia de resposta ao “cego de espírito” Miguel Pinto, colaborador do “Jornal de Leiria” e do “Marinhense” que fala de Nossa Senhora com muito menos respeito que falaria da mais humilde e rústica das criaturas".
É ainda anunciada “para os próximos números” uma “curiosa entrevista com as meninas Lúcia e Jacinta e com o menino Francisco Marto, os três que afirmam ter visto e falado com Nossa Senhora do Rosário. A fim de bem informar os leitores deste jornal, o diretor d’O Mensageiro, visitando o local da aparição após os últimos sucessos, falou com cada um dos videntes”.
O Mundo, 26 de outubro
É publicado o manifesto contra Fátima, da autoria da Comissão de Propaganda da Associação do Registo Civil, uma organização republicana odiada pelos católicos.
O Século, 26 de outubro
Pela pena do seu correspondente em Santarém, dá a notícia de dois dias do derrube da azinheira e do roubo do altar. “A noite passada muitos populares organizaram um cortejo à laia de procissão, levando à frente uns tambores e a seguir os ramos da célebre árvore da aparição da Virgem em Fátima. Pelo mesmo cortejo eram conduzidos o arco de murta, as lanternas acesas, a cruz e mais objetos que os crentes tinham colocado no improvisado altar. O acompanhamento entoava pitorescas ‘ladainhas’, e, num passo cadenciado, percorreu as principais ruas da cidade, dispersando na praça Sá da Bandeira, de onde tinha saído, indo muitos dos manifestantes depois juntar-se defronte duma janela, na rua Direita, de onde tinha sido lançado um balde de água, que apanhou alguns manifestantes e um dos polícias que no cortejo se tinham incorporado, e ali permaneceram algum tempo, em atitude hostil ao dono da casa, até que um cabo e um guarda da polícia cívica apareceram, pedindo aos manifestantes para dispersarem o que depois fizeram.
Diário de Notícias, 26 de outubro
Publica uma carta dirigida ao ministro do Interior, na qual refere a "procissão" em Santarém, pormenorizando: "Um dos populares conduzia a carrasqueira, um outro, acolitado por mais dois, figurando de eclesiásticos, conduziam, sob um chapéu de sol, uma cruz e, por fim, uns outros transportavam a estampa duma imagem religiosa, sendo encimada por um arco de murtinheira, ladeada por duas lanternas. Ao som do badalar duma campainha e do rufar dum tambor, cerca de cem populares entoavam uma ladainha, sendo sobre os mesmos e um polícia civil lançado um balde de água, quando passavam próximo da ourivesaria Lemos". E adianta que a senhora que atirou o balde de água foi multada pela polícia. Mas, e daí o apelo ao governante, a questão fulcral é a de que a manifestação "representa um vibrante desacato à lei de separação da Igreja do Estado, e ao livre pensamento dos outros e, por isso, o administrador deveria tê-la proibido, tendo em vista que a lei proíbe procissões religiosas sem consentimento da autoridade administrativa, argumento que será usado em relação a Fátima.
A Ordem, 27 de outubro
Replica o artigo em forma de carta ao ministro que o "Diário de Notícias" publicou na véspera.
João Semana, 28 de outubro
O jornal de Ovar, que se prestara a dar eco da aparição no Barral, tardou em dar notícias sobre o caso de Vila Nova de Ourém. Neste dia, rompe o silêncio e fala em Fátima, “este nome ainda há pouco ignorado em Portugal e que tem sido nestes últimos dias pronunciado por milhares de lábios e ficará indelevelmente gravado na memória de muitos que o juntarão a outros nomes já santificados pela piedade católica, porque encerram as mais extraordinárias e carinhosas manifestações do amor de Maria Santíssima para com os homens”. A peça não está assinada, na opinião do diretor do periódico regional, que ainda hoje se publica, terá sido escrita pela redação do “Mensageiro Parochial”, de Viseu, “um dos semanários que se publicavam em duplicação com o “João Semana”.
O padre Manuel Pires Bastos (num artigo que escreveu para o jornal em 1977 e agora à disposição no blogue do jornalista Fernando Pinto, que tem dedicado aos artigos do “João Semana”) também se manifesta admirado por o jornal ter mostrado “tanta preocupação” em relação aos “fenómenos da Cova da Iria, ao constatarmos que deu razoável e imediata cobertura a umas pretensas aparições ocorridas no lugar do Barral”.
E interroga-se: “Teriam as novas de Fátima tardado em chegar aqui? Teria sopesado a favor do crédito do Barral o facto de o seu caso ter vindo a público no semanário católico “A Ordem”, do Porto, de 9 de Junho imediato? Seria apenas por acatamento às reservas impostas pela Igreja relativamente aos acontecimentos de Fátima? Ou um pouco por prudência, para evitar as críticas dos detractores, escandalizados por tantas manifestações do sobrenatural? Certo é que os responsáveis do 'J. S.' só se dispuseram a quebrar o silêncio depois de todo o País ter comentado, estupefacto, o 'milagre do sol' através de reportagens da grande imprensa, nomeadamente do 'Século' do dia 15 imediato”.
Ilustração Portuguesa, 29 de outubro
Segunda e terceiras páginas da reportagem da "Ilustração Portuguesa" de 29 de outubro
Juntamente com a reportagem publicada em "O Século", dia 15, as três páginas com 11 fotografias de Judah Ruah dedicadas ao "Milagre de Fátima" sob a forma de "carta alguém que pede um testemunho insuspeito), igualmente da autoria de Avelino de Almeida, são os testemunhos mais citados por quem se tem dedicado ao sucedido na Cova da Iria. O último parágrafo resume, de certo modo, a peça do jornalista mais tendente, porém, para o mítico do que para o racional - "Milagre, como gritava o povo; fenómeno natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabê-lo, mas apenas de te afirmar o que vi... O resto é com a Ciência e com a Igreja..."
O Século Cómico, 29 de outubro
Dedicada a “O Milagre” é a primeira página do suplemento humorístico do matutino lisboeta. “A fome! Esta é que é a verdadeira aparição, palpável e real!…” — é a legenda do cartoon a toda a largura, no qual o Zé Povinho vê, sem grande surpresa, surgir um esqueleto meio tapado por um manto. Na página 3, sob o título “Milagres”, o escrito começa assim: “Não: lá que a coisa leva água no bico, isso é que não padece a menor dúvida”. Depois de resumir o “bailado do sol ao meio dia” no dia 13 de outubro e “o aparecimento da virgem a uma pastorinha, com a declaração de que a guerra europeia havia terminado naquele momento”, o redator diz que o episódio de Fátima “não é nada comparado com outras maravilhas que andam na boca do povo”.
E conta duas dessas histórias, uma sucedida “pelas vinte e quatro horas de certo dia do mês passado”, no sítio da Nazaré; outra, na mesma “província da Estremadura”. Na primeira, Jesus Cristo apareceu a dar missa na igreja, depois do sino tocar sozinho, à meia-noite, e no final deu uma vela ao sacristão para que este a fosse deitar ao mar, coisa que não fez apenas porque lhe apareceu uma velha no caminho que o aconselhou a não ir pois podia incendiar a água. A segunda, passa-se com “um rústico” que andava a roubar lenha num pinhal quando lhe apareceu “um rapazinho de 7 anos que se pôs a rir dos esforços do homem” e lhe disse ser capaz de levar a madeira de uma vez e para onde quisesse; como o homem duvidasse, a criança desafiou-o para uma aposta: “‘Se eu ganhar, dás-me a tua alma…’ O rústico não deixou continuar. Reconhecendo imediatamente que estava tratando com o diabo, benzeu-se, fez figas e logo o tentador se desfez em fumo…”
“Tudo isto, repetimos, nos foi narrado por gente do povo, cheia de fé em tais prodígios. Aqui Há coisa”, remata.
Mas as referências não ficam por aqui. Na rubrica, “Carta do ‘Jerolmo’”, também se brinca com o assunto. Na missiva dirigida à “Crida isposa” e escrita a imitar a oralidade com a pronúncia de uma certa região, o “empresário do Pauliteama de Peras-Ruivas” afirma-se convertido e futuro assíduo de missas com as notícias que a mulher lhe deu na última carta “arrespêto du milagre da Vrige da O’rem”. Mas o propósito da carta é mais “falar” da revista “Ás de Oiros”, que fora ver ao Éden-Teatro, em Lisboa, e cuja primeira parte constava “de dois cumpanheiros que passam u tempo a chamar burro um ao outro”. E termina pedindo à “isposa” que rezasse à “tal virge” pelo sucesso da peça, já que se tratava de um empreendimento muito simpático “banzá Deus”. O redator, que goza com a peça da autoria do jornalista Alberto Barbosa, não podia saber que um dos atores, em estreia oficial, um jovem de 19 anos, estudante de Belas-Artes, viria a ser considerado um artista genial. Era Vasco Santana, “uma bela invenção de fim de século”, como se classificará a si próprio numa entrevista de 1958, dada meses antes de morrer, a 13 de julho, com um colapso cardíaco. O seu funeral terá tido a assistência de tantos milhares de pessoas quantos os que se somaram no dia 13 de outubro de 1917 na Cova da Iria.
O Mensageiro, 1 de novembro
Estava prometido para este dia o início da publicação das entrevistas aos três pastorinhos, mas foi adiado. Em vez disso, replica os dois artigos publicados no "Diário de Notícias" sobre o corte da azinheira e o roubo do altar.
O Século Cómico, 5 de novembro
Mais uma carta do "Jerolmo". Desta feita, o “empresário do Pauliteama de Peras-Ruivas” fala à "Crida amétade" sobre a influência do "milagre de Fátima" no teatro lisboeta. É que, nas suas palavras, "as impresas triatais arresolveram fazer pnitensia pellas pocas vergonhas que tem fêto arrepresintar", por isso, passaram a a só pôr "in sena pessas relejiosas". E dá o exemplo da peça em cena no Apolo, onde habitualmente se apresentam "revistas e imoralidades", o "Mártir do Golgota" (na sua linguagem de ouvido "Martel du Gulgóta"), na qual se refere, "nin mais nin menos", a vida de "Rafael Marques ós pois darrependido i de descobrir qui era filho da Virge Maria, cuja esta é a sra. Adelina Aberanxes". Jerolmo diz à sua Zefa que até chorou com tanta religião e que, nos camarotes heios de "catolecos", quando surgiu o ator "Rafael de Jesus Marques" pregado na cruz, "vestido aquaxe que como ceu çantisemo Pai u deitou ó mundo, as sinhoras nan faziam cenão dizer: Ai que lindo mártel! Inté us omes eran da mêma inpenião, cunforme munto bem diçe a sra. Sufia Galinha na 'Capetal'".
Jerolmo ficou encantado com a revista que promete mais de mil representações e outras mil com o quadro novo "O Milagre de Fátima", um êxito tão acentuado que o Teatro Ginásio, diz ele, vai levar à cena "O Santo António", o Politeama "A Santa Isabel" e, para o República já estava a ser escrita uma oratória chamada "As onze virgens". Jerolmo acaba a carta com um assunto mais sério. "Traduzindo" para português, é assim: "Com isto não te enfado mais porque tenho de ir botas nas eleições pois segundo diz o Século é dever de todo o cidadão. Com respeito ao que me perguntas das subsistências cá em Lisboa não há dúvida: o que não temos é pão, nem carvão, nem carne, nem peixe, nem arroz, nem batatas, nem feijão, nem açúcar, nem nada — mas o mais há tudo, graças a Deus".
O Mensageiro, 8 de novembro
replica artigo de "A Liberdade", de 23 outubro. E inicia a publicação das entrevistas aos três pastorinhos, feitas a 19 de outubro. É uma série de quatro artigos intitulada “As Aparições da Fátima – Conversando com as três crianças”.
O Século Cómico, 12 de novembro
O suplemento humorístico do matutino republicano volta a fazer referência ao caso que passara a estar na moda e a ser citado por tudo e por nada, com gozo ou seriedade. Na primeira página, com o título "Revelação esperada", o habitual cartoon é dedicado ao líder monárquico Paiva Couceiro que acaba de lançar o livro "A Democracia Nacional" e surge vestido à D. Quixote falando para um penteadinho condecorado, de fatiota de gala e charuto na mão, simbolizando as aproximações de três nobres ao novo regime, provavelmente é o ex-rei Manuel II, referido no interior do jornal como tendo convivido com republicanos a quem disse estar-se "nas tintas para o trono"; as outras duas figuras públicas são o marquês de Soveral e António de Bragança.
"D. Paiba, lendo a sua última obra: Nada de Constitucionalismo! Falência! Convento da Batalha! Jerónimos! O Ouvinte: Valha-me a Senhora de Fátima, que ele, afinal, era doido!" — é a legenda.
O Mensageiro, 15 de novembro
Prossegue a publicação da entrevista com Lúcia. A pastor de dez anos conta “o modo como a 'Senhora' lhe aparecia. O padre Lacerda confronta com as imagens de Nossa Senhora que estão nas igrejas de Fátima, que ela diz serem diferentes da que via na aparição, e também com a aparição de Lourdes, ao que ela responde: 'Só ha dias é que uma pessoa contou em minha casa que Nosa Senhora aparecera em França, mas eu não sei como isso foi'”, constatou o historiador Luis Miguel Ferraz em "A notícia das aparições de Fátima no jornal 'O Mensageiro'".
O Mundo, 17 de novembro
"Ação e reação" é o título de mais uma peça dedicada ao "caso deprimente de Fátima", ao "episódio monstruoso" que "só serve para descrédito da religião". Conta que "grande multidão foi a Fátima e cortou uma árvore qualquer, sob a qual as três criancinhas... industriadas, viram santos e santas". E ajuíza: "Essa multidão, sem o querer, representa o sentir de todos os homens inteligentes e honestos, sejam eles católicos ou não".
O Mensageiro, 22 de novembro
O Mensageiro, 29 de novembro
Último artigo sobre a conversa que o diretor do jornal manteve com as três crianças e que o leva a escrever no final: “o que ouvi aí fica. Aguardemos a decisão da Igreja”. Trata-se de um resumo dos depoimentos de Jacinta e Francisco. A primeira mostra-se envergonhada, responde à maioria das perguntas com silêncios ou a expressão “não me recordo”, mas “confirma as palavra da Lúcia”; o segundo pouco ou nada diz.
“Já me esquecia dizer que as três crianças me disseram que a Senhora lhes dissera um segredo e que estas não revelariam a pessoa alguma”, acrescenta o autor, como faz notar Luís Miguel Ferraz, adiantando que, a seguir, "mais uma vez, o padre Lacerda insere o seu comentário, desta vez em jeito de conclusão: 'O meu inquérito estava terminado. Só me restava aguardar a decisão da Igreja que começou a organizar o processo. A dúvida que me assaltava á ida era a mesma que me acompanhava ao deixar as três crianças. Viram elas na realidade uma Imagem? Como conciliar a afirmativa de que a guerra acabava no dia 13 d’Outubro se ela ainda agora continua? Como conciliar a previsão do fenómeno solar presenciado por tão grande numero de pessoas? Não sei'”.
Por último, faz a defesa do pároco da Fátima e seu amigo Manuel Marques Ferreira, o qual "se conservou sempre alheio a tudo, levando o seu proceder a nunca ter ido á Cova da Iria no dia das aparições. Só a muitos rogos lá foi no ultimo dia”.
O Mensageiro, 20 de dezembro
Aproveitando
ainda o trabalho do historiador Luís Miguel Ferraz, fica-se a saber
que, neste dia, o jornal faz referência, pela primeira vez, às polémicas
suscitadas pelo anúncio de conferências e comícios contra as aparições,
na região. Organizados por republicanos pela região, dois deles
realizaram-se em Fátima e Ourém. No artigo do correspondente de Vila
Nova de Ourém, datado de dia 3, afirma-se que a conferência no Centro
Republicano da vila, de 1 de dezembro, “foi um verdadeiro fiasco" e até
"os oradores tiveram de desistir, visto que o povo do concelho, por
desprezo, não concorreu ao local, não obstante tanto convite que lhe foi
feito, pois ali só apareceram oito pessoas para ouvirem, à excepção do
grande número de mulheres que à sua chegada entoaram o 'Bemdito',
voltando-lhes logo as costas”. O comício no local das aparições, no dia
seguinte, “não chegou a efetuar-se porque só apareceram os célebres
oradores, acompanhados do administrador do concelho e por mais seis
indivíduos daqui, e guardados por uma força da guarda republicana desta
vila e outras vindas de Tomar e Torres Novas, que foram obrigadas a ir
ao local de Fátima”.
Nesta edição, é ainda transcrita uma peça de "A
Liberdade" publicada em outubro sobre os dois amigos que sofreram as
consequências por brincarem com a crença de outrem, assim como parte da
entrevista feita pelo "Século" ao astrónomo Frederico Oom.
O Mensageiro, 27 de dezembro
volta a publicar primeira página um texto com mais de dois meses, desta vez do semanário portuense "A Ordem", uma carta de uma senhora de Alcobaça que presenciou o “milagre do sol” e entrevistou pessoalmente os videntes, dirigida a um padre do Porto - verificou Luís Ferraz -, rematando com o comentário: “pode e deve animar-nos a esperar com alvoraçada esperança d’êxito o veredictum do Ordinário de Lisboa. O mesmo diremos do caso do Barral”.
* Um trabalho notável de ANABELA NATÁRIO em 13/05/21 no "EXPRESSO"
.
Sem comentários:
Enviar um comentário