11/02/2021

JOSÉ BRISSOS LINO

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Fora com os judeus?

O anti-semitismo e a xenofobia em geral podem começar por enfermar de razões económicas, sociais, culturais e políticas, mas transferem-se rapidamente para o domínio do irracional, com as devidas consequências   

A expulsão dos judeus dos domínios do reino foi decidida por D. Manuel I, há 520 anos, quando assinou o édito de expulsão que viria a prejudicar seriamente o desenvolvimento do país e a comprometer o seu futuro. Pensar que tal atitude discriminatória nos foi imposta pelos espanhóis de modo a abrir caminho ao casamento real com D. Isabel, traduz bem a motivação política de tal erro. Há quem estime em 120 mil o número de judeus desterrados. Com isso uma parte da riqueza do país desapareceu.

Milhares tiveram então de escolher entre a expulsão dos domínios do reino ou a conversão forçada. Claro que a fé religiosa não se negoceia, pelo que qualquer pressão externa ao indivíduo para uma mudança nessa matéria não se traduz de facto em conversão interior mas apenas em fingimento, em nome da sobrevivência ou dos interesses conjunturais do momento. Houve filhos de famílias judias tirados aos pais e entregues a famílias católicas. Persuadidos à conversão muitos foram arrastados até às igrejas e baptizados à força, mas outros fugiram e suicidaram-se, atirando-se a cisternas e a poços.

 A população judaica na península era numericamente relevante mas vista com alguma desconfiança, desde a Idade Média, já que os judeus trabalhavam para o rei na cobrança dos impostos e na organização da contabilidade pública. Daí os ataques pontuais às judiarias, embora se mantivesse um clima de tolerância religiosa.” Maria José Oliveira diz que a atitude do rei D. João II para com os judeus expulsos de Espanha foi ganhando contornos terríveis. “Em 1493 ordenou que os filhos menores fossem retirados aos pais e enviados para São Tomé, que precisava de ser povoado. A ilha tinha então grande número de crocodilos, além de um clima hostil, pelo que a maioria das crianças foi comida pelos animais. As restantes sucumbiram à fome.”

O clima anti-judaico catalisado pela peste, a seca e a fome, foi de tal forma grave que bastou um cristão-novo questionar um falso milagre para desencadear o massacre de 1506 em Lisboa, quando a turba enlouquecida e aos gritos, atiçada pelos frades, se espalhou pelas ruas na caça ao judeu. A tripulação das naus da Índia “atiçada pela pregação dos frades, violou, matou e queimou milhares de pessoas. Arrombavam as portas das casas, em busca de cristãos-novos, perseguiam quem tentava fugir, carregavam mortos e vivos para as fogueiras que iam sendo ateadas em vários locais da cidade, como o Rossio e a zona ribeirinha.” Rezam as crónicas que a carnificina e as pilhagens duraram três dias, durante os quais terão sido mortos entre duas mil a quatro mil pessoas.

Curiosamente, o Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, 27 de Janeiro, surgiu este ano poucos dias depois de o líder populista dum partido político de extrema-direita, que se caracteriza por um discurso xenófobo, racista e misógino, ter obtido quase meio milhão de votos em Portugal. O leit motiv da campanha desse partido foi a diabolização social e política da comunidade cigana, à falta de problemas com as comunidades de imigrantes, ao contrário de alguns países europeus, de modo a fazer dos ciganos portugueses os maus da fita que vivem à custa dos nossos impostos, paralelo ao discurso cavalgado pela extrema-direita que se queixa dos imigrantes por tirarem o trabalho aos nacionais desses países. Isso e o discurso do medo.

Os nazis alemães viraram o povo contra os judeus acusando-os de todos os males domésticos, tal como a seca, a fome, a peste e os interesses da coroa viraram a população portuguesa contra os judeus no século XVI. Hoje sabe-se que tal acção política resultou num Portugal mais pobre e que perdeu parte dos seus melhores valores, que foram assim contribuir para o desenvolvimento dos Países Baixos. A imagem da sinagoga portuguesa de Amsterdão, construída pelos sefarditas, é uma bofetada na memória da história política do nosso país. Ou seja, o país deu um tiro no pé, à conta do preconceito e da intolerância contra uma minoria de religião diferente.

Não sei mesmo se ainda antes das causas apontadas para a decadência dos povos peninsulares de que falava Antero de Quental nas Conferências do Casino em 1871, isto é, a Contra-Reforma promovida pelos jesuítas, a centralização política típica do absolutismo e o sistema económico decorrente dos Descobrimentos, não encontraremos, afinal, uma origem mais remota derivada das consequências da famigerada expulsão dos judeus de Portugal e Espanha.

Sempre existiram casamentos muito complicados…

IN "VISÃO" - 03/02/21

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