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Um país de excepção
"Uma médica foi ao ______ (inserir hipermercado da sua preferência), de ______ (inserir a cidade onde reside) e cruzou-se com um homem que ela sabia ter covid, visto ser seu paciente.
Fez queixa no apoio ao cliente e a senhora da caixa dirigiu-se ao microfone para solicitar: "A pessoa que está infetada com covid que se dirija aqui, em segurança. Apareceram nove"". Novo confinamento, novos mitos urbanos a circular mais rápido que o próprio vírus. Segundo os dados oficiais, recolhidos no Whatsapp, ontem às 12.30 horas, havia 49 750 novos casos de pessoas enganadas por esta historieta, que é absurda a vários níveis.
Para começar, acham que os profissionais de saúde da linha da frente têm tempo para estar na linha de caixas do Pingo Doce a fazer denúncias? Nem sequer têm tempo para comer, quanto mais para irem comprar comida. Mas a parte realmente absurda é a ideia de alguém que está a incumprir o isolamento obrigatório ir entregar-se voluntariamente só porque a menina da caixa 7 falou de forma autoritária nos altifalantes do supermercado.
Isto é o equivalente contemporâneo à velhinha que nos drogava nas Amoreiras (escolher, uma vez mais, o centro comercial da zona geográfica da sua preferência) e nos raptava para nos roubar um rim. Mas aí, em plena década de 90, dou mérito a quem conseguiu espalhar este mito pelo país inteiro, já que não havia Facebook a facilitar a disseminação da desinformação.
A verdade é que esta espécie de anedota, "uma médica, um infetado e uma operadora de caixa entram num bar", vem descredibilizar uma luta que é séria. A luta contra a estupidez. Bem sei que é uma batalha perdida à partida, mas quem sabe se não aparece por aí uma Padeira de Aljubarrota dos nossos tempos e corre tudo à pazada, na secção de padaria e pastelaria do Intermarché do Juncal. E se a irresponsabilidade fosse apenas de pessoas que contraíram a doença mas resolvem ir ao pão, estávamos nós bem (podíamos até pensar que era mais um sintoma recém-descoberto de covid, confusão mental), mas há ainda os que querem muito apanhá-la o mais depressa possível.
Gente que está com certeza nervosa por, no espaço de quase um ano, não ter sido escolhida pelo coronavírus. Há pessoas assim, não aguentam a rejeição. Vai daí, atiram-se descaradamente ao bicho, e alguns vão até negando que ele exista, só para o atiçar. Tenho-me cruzado com vários destes exemplares, infelizmente. E nem é preciso ir às compras, basta ir à net. No Instagram, deparei-me com vídeos da festa de aniversário de um modelo/influencer, Henrique Sadio, de seu nome. Confiando, provavelmente, no apelido, convidou dezenas de amigos para apagarem as velas com ele. Tudo a soprar para cima do bolo, para garantirem que ficava com uma apetitosa cobertura de cuspo.
No Twitter, fiquei a saber que clientes de um restaurante, em Camarate, fugiram para um túnel de escoamento de água, quando chegou a PSP, acabando por ter de ser resgatados pelos bombeiros. Consta que a primeira pergunta dos socorristas foi "o bitoque aqui é assim tão bom?". Já no Facebook, fui dar com uma senhora que perguntava se alguém sabia de uma manicura que fizesse unhas de gel ao domicílio. Esta cidadã percebeu, ao contrário dos anteriores, a parte de não dever mesmo sair de casa, só não percebeu a parte dos outros, nomeadamente profissionais de estética, não poderem sair também.
E justificava este pedido com um sentido "é horrível ter as unhas a partir, não é futilidade, é mesmo uma necessidade!". E eu percebi, mesmo não a conhecendo, que ela estava a ser verdadeira. Estas pessoas acreditam mesmo que aquilo que têm vontade de fazer é imprescindível. Daí que quando o Governo decretou que o confinamento só podia ser quebrado para prossecução de tarefas e funções essenciais, o movimento na rua se tenha mantido praticamente igual.
Mas há alguém, em Portugal, que pense que o seu trabalho no escritório (ou as suas bodas de ouro, a sua depilação brasileira) não é absolutamente essencial? No primeiro confinamento caímos todos no teletrabalho, agora só cai quem quer. À conta disso, outros caem na cama. Mas são outros. Nem os conhecemos. Não é culpa nossa. Somos de facto um povo excecional. Na medida em que adoramos exceções. Não percebemos como é que a pandemia se descontrolou. Não dá para entender. Afinal de contas, está toda a gente a cumprir as leis e a seguir as recomendações! Tirando nós, claro, mas nós somos a exceção que confirma a regra.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 31/01/21
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