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"Decidi falar…
contaminei-me com covid.
Sim, sou enfermeira"
Sim sou enfermeira e tenho tido todos os cuidados. Sim, não tenho fugido às medidas de confinamento nem mesmo no Natal, no qual apenas estivemos cinco adultos.
Não passeio em centros comerciais nem tão pouco ao ar livre. Apenas levo os meus cães a rua, e vou sozinha e de máscara. Na minha casa tenho a minha mãe, com 87 anos, com uma insuficiência cardíaca grave e com uma demência. Não tenho uma refeição, não lhe dou um beijo ou vejo televisão encostada no seu colo há quase um ano. Quando lhe ajudo com o banho uso mascara, e comunicamos a uma distância de dois estranhos.
Mas por uma distração o vírus entrou na minha casa, na minha família, nos meus mais queridos. E a minha primeira preocupação que durou cerca de três dias foi a minha mãe. Já com sintomas que me faziam crer que estava positiva, a minha preocupação era não contaminar a minha mãe. Com febre e dores de corpo intensas, do meu quarto com um telemóvel, coordenei as tropas. Proibi que os meus dois filhos circulassem pela casa e transformei o meu marido como o circulante, o instrumentista desta tarefa heroica. Ao fim de três dias tivemos os resultados dos testes, em que a única pessoa negativa era a minha mãe. Perante isto e em decisão familiar e contra a vontade da mãe, transferimos-la para casa da minha irmã onde iria fazer os 14 dias de quarentena, com todos os cuidados, longe de quatro pessoas positivas.
E foi só neste momento que pude tratar de mim. Os meus filhos e marido assintomáticos, descansavam-me ficando assim dedicada aos meus sintomas.
Meus caros, estava de rastos... Não tinha energia, sentia um cansaço extremo, umas dores lacerantes em todo o corpo mais acentuadas nas costas e uma temperatura de 37,5.º, que teimava em manter-se alternado com picos de 38.º que o paracetamol controlava. Decidi verificar a minha saturação, mesmo não tendo dificuldade respiratória, e rondava os 94%. Guardava para mim todos os dados que processava no meu cérebro e foi este órgão o mais exercitado pois combatia as emoções com os sintomas de modo a não entrar em pânico e ter sim discernimento para atuar corretamente.
Ao fim de quatro dias a febre começou a espaçar, apresentado períodos de 36,5 .º, mantendo, no entanto, as dores no corpo e iniciando uma congestão nasal acentuada e uma tosse irritante com ligeiro broncospasmo após os acessos. A cama era o único espaço que me fazia sentido. As saturações não melhoraram muito, mantendo os 94, e o cansaço com pequenos esforços era uma realidade. Tomar banho era um esforço comparado a um treino intenso em ginásio. Comecei também com náuseas e tonturas. Deixei de ver as notícias na televisão e fiquei adepta da Netflix.
Tranquilizava-me, e muito, as chamadas diárias do médico ou enfermeiro da minha unidade de saúde. Vigiavam os meus sintomas, relembravam-me os sinais de alarme e nunca desligavam sem me dizer que ligavam no dia seguinte. O meu coração acelerava quando me diziam que se não houvesse melhorias teria de ser observada. Ao desligarem, rezava e pedia as minhas melhoras pois não sabia como iria ser se necessitasse de um hospital. Pedia a Deus com muita força, que me ajudasse. E aqui está o meu maior sintoma. Medo. Medo de piorar, medo de não entender o comportamento deste vírus, que oscilava em mim num misto de sintomas com alguns rasgos de melhorias e de súbitos agravamentos. Medo de entrar em dificuldade respiratória e não dar conta, numa hipoxia silenciosa...Este foi um dos maiores combates que tive na minha vida. Um combate diário e solitário. Terminava quando adormecia e eu ganhava! Como? Estando grata por estar viva, por ouvir ao longe a voz dos meus filhos e marido bem-dispostos, por ter falado ao telefone e ouvir a minha mãe a dizer que estava muito bem e por ter a certeza que se entrasse num hospital, fosse qual fosse, depois daquelas portas eu teria uma equipa que iria lutar por mim.
O que é isto em comparação com todos aqueles que estão internados nos hospitais, muitos em intensivos a lutarem contra a morte. E adormecia, numa noite sempre agitada, entre frio e calores, sem posição e sobretudo com muita sede. Repeti o teste ao 10.º dia do início dos sintomas e, sem qualquer espanto ou surpresa, recebi o resultado novamente positivo. Mas estava a vencer.... Sabia que estava a vencer, mesmo tendo uma oscilação entre o estar bem e uma hora depois sentir me pior.... Sabia que o vírus circulava e mostrava-se na minha tosse muito mais acentuada, no cansaço mantido e nas dores nas costas que eram constantes. Já conseguia ver mais do que a minha cama, e quando todos se recolhiam nos seus quartos, já circulava até a cozinha, como se de um novo exercício físico se tratasse. A minha saturação baixava para 93% nestes momentos, mas na cama, os 98, 99% fixavam-se.
O medo era combatido por estas pequenas vitórias. E foi também ultrapassado pela revolta. Para isso ajudou voltar a ver o telejornal e o aumento dos números de infetados. Assistir a umas eleições presenciais (é verdade, votei em casa...antecipadamente) em que o único com bom senso foi o reeleito que não só respeitou o tempo dos outros para falar, andando às voltas no carro em Lisboa, como apresentou-se só de máscara e sem grandes alegrias. Ouvir tantos e tantos comentários inoportunos sobre a vacina sobre a egos em que tudo vale para aparecer na televisão. Continuar a olhar pela janela e ver uma circulação quase normal de pessoas, de vidas sem respeito nenhum por mim... por todos.... Tudo isto e mais um bocadinho revoltou-me sim....
E é por isso que aqui me encontro a escrever. Porque quero pedir-vos que fiquem em casa. Que protejam os vossos. Nem todos tem um final feliz para uma história muito parecida com a minha. Nem sei mesmo se esta minha história num futuro não terá alguma consequência. Ao fim de 20 dias, vou recomeçar a trabalhar. Vou cuidar de quem precisa. Serei mais uma enfermeira a fazer o melhor possível para combater esta loucura. Ainda debilitada, com tosse e um cansaço não explicável, estarei a mais do que 100% para lutar, mas...vou precisar da ajuda de todos. E de uma ajuda tão simples... fiquem em casa!
* Enfermeira há 25 anos na área hospitalar. Atualmente na USF Carnaxide- ACES de Oeiras e Lisboa Ocidental. Tem prestado funções no atendimento complementar aos doentes covid e agora mais alargado às doenças respiratórias
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" - 30/01/21
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