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“Julgamento pelos meios de comunicação social.” Trata-se de uma
expressão de origem anglo-saxónica usada – nomeadamente em estudos de
criminologia ou outros no último quartel do século XX e também no século
XXI – para descrever o impacto da cobertura mediática (e dos seus “se” e
“quando”, e especialmente do seu “como”) na reputação de alguém (ou
mesmo em mais do que isso). Defende-se que essa cobertura pode criar, e
cria frequentemente, uma perceção generalizada de culpa ou de inocência
antes ou depois de um veredicto de um tribunal, e às vezes apesar dele.
Ora, penso que não se pode dizer que não seja claro que tal ocorre, e
aliás cada vez mais, à medida que mais processos, em especial os
relativos a certos casos (em função dos envolvidos e/ou dos temas), têm
repercussão e cobertura mediáticas, às vezes muito intensas. Existe e é,
na verdade, inevitável.
Dir-se-á que são os custos de uma sociedade cada vez mais aberta. É em grande parte verdade, mas é bom que se tenha em conta que assim acontece, não fingindo que a notícia (quando não o “espetáculo”) é neutra, porque não é, sobretudo nos seus efeitos. Saber se é neutra ou não (e até saber se pode sequer sê-lo) nas suas motivações e/ou no seu conteúdo é outra questão, bem complexa, e que aqui se deixa de lado. Bastará por agora sublinhar que não é neutra nos seus efeitos; nada, nada neutra. E, ao dizer-se isto, não se pretende que ela não exista, antes pelo contrário. O que se pretende é, por um lado, sublinhar que devemos estar bem conscientes de que é assim e que, por outro lado, isso obriga a especiais cuidados na feitura e na divulgação das notícias, bem como na receção das mesmas e nos efeitos que daí se tiram. Pior do que os efeitos de uma coisa é ignorar ou fazer de conta que não há efeitos. Para quem gosta de livros, serve como leitura, e para pensar, “A Honra Perdida de Katharina Blum”. Para quem preferir filmes, veja-se, por exemplo, “O Homem que Matou Liberty Valance”. Para quem preferir a vida real, olhe à sua volta; pare, escute e olhe... (mesmo que o comboio não venha –ainda – na sua direção).
Mas há outra questão, tão ou mais importante, e que tem vindo a ser
assinalada e estudada, embora ainda pouco, e timidamente. É que há outra
vertente importante e delicada no fenómeno da mediatização dos
processos, que se prende com a possível influência daquela cobertura nas
decisões e comportamentos processuais dos tribunais e de outras
instâncias formais de controlo, nomeadamente Ministério Público e
Polícias; e também dos advogados, e de outros. Há, com efeito, quem diga
que essa influência pode existir. Eu poderia “simpaticamente” dizer –
aliás, sendo incoerente com o que antes já disse ou escrevi – que a
questão não tem sequer sentido.
Ou poderia mesmo, numa tentativa de ironia, dizer: não, o problema não se põe, e nunca vi ou nunca pressenti tal influência. Estaria, se assim fizesse, a (tentar) ser irónico. Fernando Pessoa, em “O Provincianismo Português”, de 1928, escreveu: “Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário.” Com efeito, não posso dizer, seriamente, que a questão não tem sentido. Tem todo o sentido, a não ser que esqueçamos a natureza humana de todos os atores judiciários. Ou a não ser que queiramos trazer para esta discussão dogmas confortáveis ou carinhosos atos de fé. E uma coisa e outra não são chamadas para este terreno, não só porque não têm aqui cabimento, mas também porque podem decorrer de ou conduzir a cegueira ou perfídia, ambas bem perigosas. A questão existe, tem de ser dita e impõe-se que seja enfrentada.
IN "JORNALDE NEGÓCIOS" - 16/12/20
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