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2480.UNIÃO
Oito meses depois, a morte de Ihor começa finalmente a despertar indignação. Um relatório da IGAI e a desvergonha da ainda diretora do SEF acordaram os distraídos. Mas que a justa fúria contra Cristina Gatões e governo não nos distraia do essencial - o que está errado no SEF não se resolve só com demissões.
Nas últimas semanas, várias pessoas, entre comentadores muito encartados e anónimos das redes, afirmaram, na sequência de notícias sobre o relatório da Inspeção Geral da Administração Interna e da entrevista da diretora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que houve um incompreensível silêncio sobre as circunstâncias da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, ocorrida a 12 de março e conhecida publicamente 18 dias depois, quando três inspetores da polícia de fronteiras foram detidos pela PJ, indiciados por homicídio..
Não. Não houve "silêncio" sobre a morte de Ihor. Os jornais - com relevo para o DN e o Público - pegaram na história desde o início e nunca a largaram: publicámos dezenas de notícias. Nesta coluna, este é o quarto artigo de opinião sobre o assunto, que por qualquer motivo não tinha até agora despertado a indignação que merece. Chegou? Ainda bem; mas seria bom que quem até agora esteve calado assuma que fez parte do silêncio que pretende denunciar.
O motivo deste súbito interesse é em grande parte a entrevista que a diretora nacional do SEF, Cristina Gatões, deu à RTP, e na qual assume que Ihor foi vítima de "tortura evidente" mas se diz enganada: o que lhe foi transmitido, garante, é que morrera uma pessoa "de paragem cardiorrespiratória na sequência de convulsão". Infelizmente quem entrevistou Gatões não lhe perguntou quem a enganou, nem quando soube da morte e por quem, e o que fez a seguir.
Se calhar aqui é preciso lembrar que se trata da diretora de uma polícia criminal. Que se foi enganada é porque não sabe fazer o seu trabalho: é no mínimo inadmissível que não tenha sabido da morte no próprio dia em que ocorreu e não se tenha querido inteirar pessoalmente das circunstâncias. Que não tenha pugnado para que tudo fosse conduzido de forma a não haver suspeitas de que algo correra mal - por exemplo fazendo questão de chamar a PJ ou o MP ao local. Poderá dizer que confiou nos subordinados, nomeadamente no diretor de Fronteiras de Lisboa. Mas atendendo ao que a Inspeção Geral da Administração Interna afirma no seu relatório sobre esta morte - que o diretor de Fronteiras de Lisboa esteve junto ao cadáver duas horas depois do óbito e comandou a redação de uma versão "conveniente" dos dois últimos dias de Ihor no SEF -, tal significa que, no mínimo, não sabe escolher as pessoas em quem deposita confiança.
Há ainda, no que respeita à conduta de Gatões após a morte de Ihor, o facto de ser obrigatório a direção do SEF, perante um facto desta gravidade, abrir um processo de averiguações. Isso sucedeu logo a 13 de março, afirmou ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, no parlamento (a 8 de abril). Mas no relatório da IGAI não há, como o DN noticiou esta semana, rasto desse processo de averiguações - nem explicação sobre a sua falta.
Aliás, curiosamente, o relatório da IGAI não refere a direção nacional do SEF. Mas não é por isso que deixa de ser um manifesto da sua total incompetência.
Desde logo por mostrar como aquela polícia funciona numa cultura de ilegalidade e de diluição de responsabilidades, de informalidades, de desleixo, de incúria, e da mais chocante falta de respeito pelos direitos das pessoas detidas. Descreve como o SEF recusa entrada a pessoas sem cumprir os mínimos de legalidade - a IGAI considera que os inspetores que tomam essa decisão não estão autorizados a fazê-lo -, nega intérpretes aos cidadãos estrangeiros (desde que chegou até que morreu Ihor nunca beneficiou dos serviços de um tradutor), assim como representação legal e até o direito a serem presentes a um juiz quando o período de detenção excede 48 horas: o costume é mandar um mail para o tribunal e este despacha a extensão da detenção com base na informação que o SEF manda. No caso de Ihor, não só a informação enviada era falsa (o mail diz que não fora ainda repatriado porque a companhia aérea não providenciara voo, quando a verdade é que Ihor se recusara a embarcar) como omite factos fundamentais - por exemplo o de o cidadão ucraniano ter sido conduzido ao hospital e estar a ser medicado, o que poderia obstar a uma viagem de avião.
Mostra ainda que o Centro de Instalação Temporária (o local onde são detidos os cidadãos estrangeiros impedidos de entrar no país, e onde Ihor morreu) não tem desde o início do ano um responsável do SEF designado para o gerir, estando entregue a vigilantes de uma empresa privada. Vigilantes de uma empresa privada que estiveram meses em funções de autoridade pública sobre pessoas completamente desprotegidas e que têm o hábito de manietar detidos com fita adesiva - e sabe-se lá que mais. Parece impossível, não é? Mas é o que está preto no branco no relatório da IGAI.
Só isso deveria, evidentemente, determinar a demissão da direção. Nem seria preciso depararmo-nos com a descrição do conluio de mais de uma dezena de funcionários do SEF na tentativa de encobrimento das circunstâncias da morte.
Constata-se porém que o ministro da Administração Interna não considera estes factos suficientemente graves para forçar a demissão de Gatões (que disse à RTP nunca ter posto o lugar à disposição). Tão-pouco considera que a descrição aterradora feita pela IGAI do funcionamento do SEF e da cultura que nele se vive justifica esclarecimentos públicos cabais.
Eduardo Cabrita pode, claro, dizer que espera pelo fim dos processos criminais e da prossecução dos processos disciplinares para completo apuramento das responsabilidades. Pode alegar que não é neste momento assente que, como defende o Ministério Público, Ihor tenha sido vítima de agressões e tenha morrido em consequência delas, ou que as agressões a existirem tenham sido perpetradas pelos três arguidos. Tudo isso se admite; existe presunção de inocência.
Sucede que o resto - a ausência de gestão do CIT e tudo o que a IGAI descreve sobre o funcionamento do SEF, a forma como foi cozinhado o relatório dos dois últimos dias do cidadão ucraniano, a não existência de intérpretes, de representação legal, a fita adesiva usada para manietar Ihor, o algemamento pelos três arguidos abandonando-o durante horas nessa situação, a posse de armas proibidas (bastões extensíveis) por dois dos arguidos e a admissão por testemunhas, incluindo inspetores chefes, de que é comum verem-se funcionários do SEF com esses bastões à cintura, e muito mais - é suficiente para se concluir que esta polícia funciona no total desprezo pelos princípios do Estado de Direito.
Dir-se-á que não foi com este governo que essa cultura nasceu. Certo: algo assim advém de muitos anos de ausência de exigência e olhar para o outro lado. Mas é com este governo que isto se revelou iniludivelmente, à custa da morte de um homem. Impossível aceitar que algo com esta gravidade seja tratado pela tutela com a displicência a que temos assistido: manter Gatões, recusar esclarecimentos (não têm conta as perguntas que o DN fez ao SEF e ao MAI que não obtiveram resposta), fazer afirmações como "o que se passou foi negligência grosseira ou encobrimento grave" e depois nada acontecer.
Oito meses é tempo mais que suficiente para uma ação política - que não existiu. E é tempo demais para não ter havido uma tentativa de reparação.
Em maio de 1996, um homem, Carlos Rosa, foi assassinado no posto da GNR de Sacavém, numa sessão de tortura que incluiu aquilo a que se dá o nome de gatilhada: encostar o cano de uma arma à cabeça de alguém e disparar, simulando uma execução. Ao contrário do que acreditava o polícia que o fez, a arma não estava vazia: Rosa foi mesmo executado. Para encobrir o crime, ele e outros guardas decapitaram o corpo e esconderam a cabeça.
Quando os factos se souberam, para consternação nacional, o então Provedor de Justiça pugnou para que fosse atribuída uma indemnização extrajudicial à viúva e ao filho de Rosa. Em julho - dois meses depois do homicídio - o governo de António Guterres, do qual António Costa era ministro dos Assuntos Parlamentares, aprovou essa indemnização. Foi também esse governo, e na sequência desse caso, que criou ainda no mesmo ano a Inspeção Geral da Administração Interna.
Mas a triste sorte de Ihor Homeniuk não mereceu até agora nem a indignação geral nem sequer o interesse específico da Provedora de Justiça, que tanto tem denunciado as condições inaceitáveis dos CIT, aos quais chamou "terras de ninguém" e espaços de "não direito". Não mereceu a exigência de que o SEF seja mudado de cima a baixo - ou extinto. Não mereceu praticamente nada a não ser a obsessão de poucos jornalistas, entre os quais me incluo.
E no entanto pouco houve nos últimos anos que merecesse mais o nosso clamor. Porque se é isto uma polícia portuguesa do século XXI, se é assim que tratamos pessoas completamente desprotegidas, que país somos? Se não chega a diretora do SEF assumir que um homem foi torturado sob a sua guarda, a do Estado português - a nossa - para que lhe indemnizem a família, que falta? Que nos falta?
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