05/11/2020

LUÍS MENEZES LEITÃO

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A caminho do 

Estado de polícia 

 A forma mais fácil de esvaziar uma Constituição não consiste em suspendê-la formalmente, mas simplesmente em deixar de a aplicar.

O art. 44.o, n.o 1 da Constituição garante a todos os cidadãos o direito de se deslocarem livremente em território nacional, e o art.o 19.o n.o 1, da Constituição estabelece que os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição. Apesar disso, o Governo proibiu no passado fim-de-semana a deslocação entre concelhos entre os dias 30 de Outubro e 3 de Novembro, através de uma simples resolução do Conselho de Ministros, invocando estar autorizado por uma lei de protecção civil de 2006 e uma lei de vigilância da saúde de 2009.

Perante esta situação, um partido político e uma advogada interpuseram nos tribunais administrativos intimações para protecção dos direitos, liberdades e garantias, contra a Presidência do Conselho de Ministros e o Estado Português. O partido político instaurou a acção no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, mas esse Tribunal declarou-se incompetente no dia 28 de Outubro, remetendo o processo para o Supremo Tribunal Administrativo. Neste supremo tribunal, o relator, a 29 de Outubro, declarou de imediato o Estado parte ilegítima, só depois mandando citar a “Presidência do Conselho de Ministros/Conselho de Ministros” para apresentar contestação em 24 horas. A Presidência do Conselho de Ministros apresenta então contestação, subscrita por um consultor do Centro de Competências Jurídicas do Estado, em que invoca a falta de legitimidade do partido político por não ser titular dos direitos fundamentais invocados, não poder agir ao abrigo do direito de acção popular e não ter direito de intervir judicialmente na defesa dos cidadãos. Perante a excepção deduzida, o partido foi notificado para se pronunciar em 24 horas, tendo prescindido dessa faculdade. Assim, no passado sábado, e já passados dois dias da proibição de circulação, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que os partidos políticos não têm legitimidade para interpor intimações em defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nem sequer tendo apreciado a questão de fundo – isto apesar de ser manifesto que um partido político é prejudicado por proibições de deslocação, quanto mais não seja porque vê a sua actividade política fortemente restringida.

Já relativamente à outra acção, esta foi interposta por uma advogada em causa própria já no Supremo Tribunal Administrativo, contra o Estado Português e a Presidência do Conselho de Ministros. No dia 29 de Outubro, mais uma vez, o Supremo Tribunal Administrativo declara o Estado parte ilegítima, mandando citar o “Conselho de Ministros” para responder até às 17 horas do dia 30 de Outubro. O Conselho de Ministros contestou igualmente a intimação, invocando previamente como excepções a ilegitimidade passiva da Presidência do Conselho de Ministros e a impropriedade do meio.

Tendo sido julgadas improcedentes estas excepções, o Supremo Tribunal Administrativo acabou por indeferir a intimação por considerar que a resolução do Conselho de Ministros estava legitimada por duas normas, o n.o 2 do art.o 17.o da lei 81/2009 (Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública) e os art.os 8.o, n.o 6, e 19.o da lei 27/2006, de 3 de Julho (Lei de Bases de Protecção Civil) – isto apesar de considerar “estarmos perante normas legais que não foram aprovadas para dar cobertura legal a esta concreta medida”, mas que constituem “uma base habilitante mínima”. Assim, fica o Governo legitimado para utilizar normas vagas e que nada têm a ver com a situação actual para aplicar medidas altamente restritivas dos direitos dos cidadãos sem autorização parlamentar nem promulgação pelo Presidente da República.

E quanto à inconstitucionalidade pelo facto de ser proibida a circulação entre concelhos fora do estado de emergência, o Supremo Tribunal Administrativo considera que “da medida em apreço não resulta nenhuma suspensão de direitos, nem do direito-liberdade de circulação. A mobilidade da A. não fica suspensa, nem mesmo no âmbito de deslocações para fora do seu concelho, o que decorre da medida é que essas deslocações não devem ser arbitrárias, ou seja, devem ter um propósito derrogador do dever de permanência no concelho. E isto não consubstancia nenhuma suspensão do direito, mas sim uma limitação do mesmo, ou seja, a A. deixa de poder livremente circular entre concelhos e passa a ter de o fazer com um fundamento (…)”. Assim, o direito de deslocação deixa de ser livre, ao contrário do que dispõe o art.o 44.o da Constituição, e o Supremo Tribunal Administrativo não encontra aí nenhum problema constitucional.

A forma mais fácil de esvaziar uma Constituição não consiste em suspendê-la formalmente, mas simplesmente em deixar de a aplicar. Portugal encontra-se hoje a caminho de um Estado de polícia, em que as medidas de polícia sanitária se sobrepõem a tudo, incluindo aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

* Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

IN "i" - 03/11/29

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