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Como escrevi recentemente neste espaço, o Orçamento para 2021 é
claramente expansionista e marcado pela situação de emergência,
concentrando aumentos de despesa em medidas de apoio social, apoio ao
emprego e reforço do sistema público mais pressionado, que é
naturalmente o SNS. Esse caráter expansionista é naturalmente limitado
pela consciência de que défice é endividamento e de que as capacidades
de endividamento adicional não são infinitas – bem como pela necessidade
de prever um regresso a um défice inferior a 3% do PIB já em 2022.
Apesar da expansão da despesa e de algumas medidas de redução de
receita fiscal, o défice orçamental, excluindo medidas one-off, desce
dois pontos percentuais – descida que se deve exclusivamente ao efeito
automático do crescimento do PIB. Prevê-se que, depois do desastre de
2020, a economia recupere um pouco. Assim, não faz qualquer sentido
falar de “austeridade” a propósito desta redução do défice. Austeridade
quis dizer cortes na despesa e aumentos de impostos – o contrário do que
acontece. Se queremos ser anarquistas na semântica, tanto podemos dizer
que o orçamento tem “austeridade” como que tem “pimenta-da-jamaica” ou
“calças em boca de sino”.
As críticas a esta estratégia orçamental foram em vários sentidos não
conciliáveis entre si: o défice seria demasiado elevado; o aumento da
despesa, insuficiente; haveria um desequilíbrio das medidas em favor dos
aspetos de apoio social e serviços públicos face ao apoio dado às
empresas.
No momento em que escrevo, o Orçamento para 2021 ainda não foi
votado, mas é previsível que venha a ser aprovado, contando com a
abstenção de três partidos e duas deputadas não inscritas. Cinco outros
partidos optaram por votar contra. O Orçamento vai assim passar para a
fase de discussão na especialidade, importando refletir sobre o
significado desses diversos sentidos de voto, porque a discussão na
especialidade vai forçar a clarificação de posições.
À direita, o voto contra significa talvez que se opõem ao mix de
medidas e que pretenderiam mais medidas de estímulo às empresas. A
especialidade permitirá verificar quais as medidas que são propostas.
Permitirá também saber quais as medidas de apoio social e financiamento
dos serviços públicos a que a direita – designadamente o PSD – pretende
que sejam retiradas em favor das suas propostas. Ou verificar que
pretendem apenas somar umas às outras, e que não estão afinal demasiado
preocupados com o endividamento do país.
À esquerda – e passando ao lado de propostas sem caráter orçamental
que não deviam fazer parte deste debate – a discussão parece ser antes
em torno de acentuar o sentido assumido pelo Orçamento no reforço dos
serviços públicos e dos apoios sociais.
Aqui, é particularmente incompreensível a posição assumida pelo Bloco
de Esquerda. Como parece estar esclarecido que não existe qualquer
redução de financiamento do SNS – e que alegada redução da despesa
resulta de comparação entre valores que não são comparáveis por não
terem em conta todas as fontes de financiamento – não parece haver
nenhuma medida no Orçamento sobre cujo sentido o BE discorde. O BE
pretende, legitimamente, o aprofundamento de algumas medidas constantes
da proposta de OE. Mas o voto contra significa a vontade de rejeição
deste Orçamento, tendo como resultado que nem as medidas que se
considera que são pouco chegariam a entrar em vigor. E a essa posição é
difícil descortinar um fundamento.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 29/10/20
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