22/10/2020

FRANCISCO MENDES DA SILVA

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StayAway Covid: 

nem obrigatória 

nem voluntária

Se há histeria, é a histeria daqueles que pensam que vale tudo para combater a pandemia, incluindo deitar fora partes do sistema político das liberdades que, com tanto esforço, fomos minuciosamente construindo

O melhor serviço que António Costa prestou recentemente foi a lição prática que nos deu sobre como se instala nas sociedades livres o espírito do autoritarismo. Foi todo um tratado, a forma como na semana passada, em directo de Bruxelas, o primeiro-ministro defendeu a obrigatoriedade da aplicação StayAway Covid.

Podia ficar-me pelas suas frases mais arrepiantes – quando diz que tem de ser autoritário porque as pessoas não aderem espontaneamente às ideias brilhantes do Governo. A parte mais importante, porém, foi aquela em que Costa deu exemplos das medidas restritivas aplicadas desde Março, para justificar que esta é só mais uma medida “autoritária”.

Foi a parte da intervenção mais emblemática do humor do tempo. Com aquele seu jeito ligeiro e superficial, de sorriso jocoso, quase a encolher os ombros perante a curiosidade dos jornalistas, o primeiro-ministro deu voz aos muitos portugueses que, de facto, acham esta polémica absolutamente fútil: se no passado já cedemos ao Estado tanta da nossa liberdade, porquê este alarido agora?

Acontece que é sempre assim, a lutar contra uma rampa deslizante, que as liberdades vão perdendo terreno. Para se tentar resolver os problemas, vão sendo paulatinamente admitidas e normalizadas ideias que antes eram inaceitáveis. De cada vez que damos um passo, fica sempre mais fácil dar o seguinte. De cada vez que aceitamos uma nova restrição à liberdade, criamos sempre condições mais favoráveis para as próximas restrições. E quem se for opondo a elas só pode ser ingénuo, hipócrita ou histérico.

Neste caso, é assustador que haja tanta gente a achar natural que o Estado entre nos nossos telemóveis para nos conhecer todos os movimentos, sem autorização nem razão judicial. Não ignoro os cuidados de segurança que foram introduzidos no sistema. Mas este é um passo que verdadeiramente nunca foi dado. E, como sabemos, nestas coisas o primeiro passo nunca é o último passo. A partir do momento em que consideramos aceitável que o Estado vá connosco, no bolso, para todo o lado (seja por que razão for), estamos numa viagem sem retorno.

Há até quem chegue ao ponto de defender que é uma hipocrisia criticar a StayAway Covid quando se tem o telemóvel repleto de outras aplicações geridas por empresas privadas. Quem pensa assim não percebe o fundamental: a utilização de aplicações privadas é voluntária. Podemos desaparecer delas em segundos, extinguir contas, revogar unilateralmente a relação comercial com aquelas empresas, sem qualquer sanção.

Isto não significa que não haja abusos. Há-os, evidentemente. Algumas daquelas empresas estão em maus lençóis perante as autoridades de países democráticos, por causa dos excessos que terão cometido no uso da informação que recolheram. Mas isso só mostra a importância que a liberdade e a privacidade têm na nossa hierarquia de valores, e como é função do Estado democrático protegê-las.

São óbvias as diferenças políticas, filosóficas e civilizacionais entre a utilização voluntária de aplicações – que é um exercício da liberdade – e a cedência ao Estado (ao Estado, que tem o monopólio da Justiça e da violência organizada) de informação permanente sobre os nossos movimentos. Não compreender isto é não compreender nada do que está em causa.

É por isso, de resto, que eu nunca quis instalar a aplicação. A conversa do “dever cívico”, nesta matéria, causa-me um profundo desconforto. Dever cívico não é instalar a aplicação; é combater a rampa deslizante. Foi exactamente por causa dessa conversa piedosa que o Governo se sentiu incentivado e legitimado a tornar a aplicação obrigatória.

Portanto, se há alguma ingenuidade em tudo isto, é a ingenuidade das pessoas que correram a instalar a aplicação e agora se escandalizam com a sua obrigatoriedade. Se há hipocrisia, é a hipocrisia dos que são contra essa obrigatoriedade, mas defendem que toda a gente use a aplicação (qual é a diferença entre isto e as frases arrepiantes do primeiro-ministro?). E, se há histeria, é a histeria daqueles que pensam que vale tudo para combater a pandemia, incluindo deitar fora partes do sistema político das liberdades que, com tanto esforço, fomos minuciosamente construindo.

* Jurista 

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 20/10/20

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