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StayAway Covid:
nem obrigatória
nem voluntária
Se há histeria, é a histeria daqueles que pensam que vale tudo para combater a pandemia, incluindo deitar fora partes do sistema político das liberdades que, com tanto esforço, fomos minuciosamente construindo
O melhor serviço que António Costa prestou recentemente foi a lição
prática que nos deu sobre como se instala nas sociedades livres o
espírito do autoritarismo. Foi todo um tratado, a forma como na semana
passada, em directo de Bruxelas, o primeiro-ministro defendeu a
obrigatoriedade da aplicação StayAway Covid.
Podia ficar-me pelas suas frases mais arrepiantes – quando diz que tem de ser autoritário porque as pessoas não aderem espontaneamente às ideias brilhantes do Governo. A parte mais importante, porém, foi aquela em que Costa deu exemplos das medidas restritivas aplicadas desde Março, para justificar que esta é só mais uma medida “autoritária”.
Foi a parte da intervenção mais emblemática do humor do tempo. Com
aquele seu jeito ligeiro e superficial, de sorriso jocoso, quase a
encolher os ombros perante a curiosidade dos jornalistas, o
primeiro-ministro deu voz aos muitos portugueses que, de facto, acham
esta polémica absolutamente fútil: se no passado já cedemos ao Estado
tanta da nossa liberdade, porquê este alarido agora?
Acontece que é sempre assim, a lutar contra uma rampa deslizante, que
as liberdades vão perdendo terreno. Para se tentar resolver os
problemas, vão sendo paulatinamente admitidas e normalizadas ideias que
antes eram inaceitáveis. De cada vez que damos um passo, fica sempre
mais fácil dar o seguinte. De cada vez que aceitamos uma nova restrição à
liberdade, criamos sempre condições mais favoráveis para as próximas
restrições. E quem se for opondo a elas só pode ser ingénuo, hipócrita
ou histérico.
Neste caso, é assustador que haja tanta gente a achar natural que o
Estado entre nos nossos telemóveis para nos conhecer todos os
movimentos, sem autorização nem razão judicial. Não ignoro os cuidados
de segurança que foram introduzidos no sistema. Mas este é um passo que
verdadeiramente nunca foi dado. E, como sabemos, nestas coisas o
primeiro passo nunca é o último passo. A partir do momento em que
consideramos aceitável que o Estado vá connosco, no bolso, para todo o
lado (seja por que razão for), estamos numa viagem sem retorno.
Há até quem chegue ao ponto de defender que é uma hipocrisia criticar
a StayAway Covid quando se tem o telemóvel repleto de outras aplicações
geridas por empresas privadas. Quem pensa assim não percebe o
fundamental: a utilização de aplicações privadas é voluntária. Podemos
desaparecer delas em segundos, extinguir contas, revogar unilateralmente
a relação comercial com aquelas empresas, sem qualquer sanção.
Isto não significa que não haja abusos. Há-os, evidentemente. Algumas
daquelas empresas estão em maus lençóis perante as autoridades de
países democráticos, por causa dos excessos que terão cometido no uso da
informação que recolheram. Mas isso só mostra a importância que a
liberdade e a privacidade têm na nossa hierarquia de valores, e como é
função do Estado democrático protegê-las.
São óbvias as diferenças políticas, filosóficas e civilizacionais
entre a utilização voluntária de aplicações – que é um exercício da
liberdade – e a cedência ao Estado (ao Estado, que tem o monopólio da
Justiça e da violência organizada) de informação permanente sobre os
nossos movimentos. Não compreender isto é não compreender nada do que
está em causa.
É por isso, de resto, que eu nunca quis instalar a aplicação. A
conversa do “dever cívico”, nesta matéria, causa-me um profundo
desconforto. Dever cívico não é instalar a aplicação; é combater a rampa
deslizante. Foi exactamente por causa dessa conversa piedosa que o
Governo se sentiu incentivado e legitimado a tornar a aplicação
obrigatória.
Portanto, se há alguma ingenuidade em tudo isto, é a ingenuidade das pessoas que correram a instalar a aplicação e agora se escandalizam com a sua obrigatoriedade. Se há hipocrisia, é a hipocrisia dos que são contra essa obrigatoriedade, mas defendem que toda a gente use a aplicação (qual é a diferença entre isto e as frases arrepiantes do primeiro-ministro?). E, se há histeria, é a histeria daqueles que pensam que vale tudo para combater a pandemia, incluindo deitar fora partes do sistema político das liberdades que, com tanto esforço, fomos minuciosamente construindo.
* Jurista
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 20/10/20
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