17/10/2020

FILIPE LUÍS

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Contra a aparição do vírus 

 A 13 de setembro, uma multidão não esperada invadiu Fátima, expondo as falhas de organização da Igreja, em contraste com o cumprimento de regras sanitárias no 1º de Maio. Essa lição terá sido interiorizada, quer pelos fiéis, quer pela hierarquia: esta semana, ao celebrar a última aparição de 1917, D. José Ornelas, bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal, disse missa para menos de seis mil peregrinos

De um milhão para menos de seis mil: nos seus tempos mais áureos, o Santuário de Fátima chegou a receber perto de um milhão de peregrinos – e, nas visitas papais, o normal foi sempre haver uma multidão de mais de meio milhão de pessoas. Neste 12 para 13 de outubro, com oito entradas rigorosamente controladas e uma pressão de visitantes muito inferior à esperada, o número máximo de seis mil pessoas nem sequer foi atingido.

A Igreja Católica vive tempos inéditos que, noutra época, seriam rapidamente identificados como “sinais do fim do mundo”. No auge da pandemia e do confinamento, as missas foram suspensas e os templos fecharam. Nos últimos dois mil anos, foi a primeira vez que aconteceu. A medida, decretada por Roma e pouco contestada pela hierarquia, foi bastante incompreendida por vários setores das bases, sobretudo os mais conservadores. Nas muitas pestes registadas ao longo dos últimos mil anos, o catolicismo ampliara a sua esfera de influência, atribuindo ao castigo divino, pelos erros e pelos pecados dos homens, a eclosão de cataclismos sanitários que dizimavam, ciclicamente, enormes porções da população europeia. Durante os surtos de peste negra, sobretudo no final da Idade Média, os padres foram a linha da frente no combate à pandemia, socorrendo doentes e confortando famílias. Por isso, devido à exposição, o clero – o baixo clero, entenda-se… – foi, historicamente, uma das classes mais atingidas pelos contágios.

Sinal dos tempos, e da laicização dos poderes, desta vez, a Covid-19 fechou igrejas e fez desaparecer os seus pastores, embora alguns tenham recorrido ao teletrabalho, na transmissão de celebrações religiosas através de ferramentas como o Zoom.

Compreendendo mal a tolerância dada a manifestações como a da CGTP, no 1º de Maio, e a Festa do Avante! (ambas, ainda por cima, organizadas pelos “rivais ideológicos” comunistas…), os católicos deram mostras de impaciência, exigindo tratamento igual. A 13 de setembro, uma multidão não esperada invadiu Fátima, expondo as falhas de organização da Igreja, em contraste com o cumprimento de regras sanitárias no 1º de Maio. Essa lição terá sido interiorizada, quer pelos fiéis, quer pela hierarquia: esta semana, ao celebrar a última aparição de 1917, D. José Ornelas, bispo de Setúbal e presidente da Conferência Episcopal, disse missa para menos de seis mil peregrinos. A marcar o distanciamento, os círculos desenhados na Cova da Iria, recalcados de imagens que todos vimos, por exemplo, na abertura de algumas creches, eram a imagem expressiva de uma nova ordem. E a falta de comparência de devotos assustados também ajudou. Em tais condições, é possível que o vírus tenha sido impedido de fazer a sua aparição no Altar do Mundo. 

IN "VISÃO" - 15/10/20

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