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Vale tudo
A ideia de que o eleitor é uma marioneta é vista como redutora na sociedade moderna, mas as evidências dizem o contrário. O melhor exemplo é Donald Trump, que todos os dias mostra ao mundo como é possível manipular o eleitorado com mentiras que este quer ouvir.
A propaganda política acompanha a humanidade na sua evolução
civilizacional desde os tempos do Primeiro Império Persa. Uma das formas
de propaganda mais antigas remonta ao período das guerras civis
romanas, com as acusações públicas, de crueldade, cobardia, iliteracia e
deboche, entre o Imperador Augustus e o General Marcus Antonius, que
protagonizaram a transformação da República Constitucional numa
República Autocrática.
A destruição retórica do carácter do adversário, através de ataques à virtude, bravura, educação, dignidade e até aspeto físico, que visavam a sua desqualificação política e afastamento da comunidade, é conhecida, no período da Roma Antiga, como invetiva romana. As invetivas podiam ter várias expressões, como discursos, poemas, ensaios ou panfletos e terão sido um dos principais motivos para que a propaganda adquirisse uma conotação negativa.
Na sua origem, a propaganda assumia a forma de boato e difamação,
como um dos métodos mais eficazes para moldar a opinião pública em
relação a uma ideia ou adversário político. O pressuposto, que se mantém
atualmente, é o de que esta forma de comunicação serve para influenciar
audiências, e não assenta em critérios objetivos, mas numa seleção de
factos que visam estimular uma determinada perceção da realidade, muitas
vezes alicerçada em reações emocionais.
Por este motivo, ao longo da história, a propaganda ganhou relevância
em períodos conturbados de transformação política e social, como por
exemplo a Revolução Francesa ou as grandes Guerras Mundiais. Os meios de
massas vieram estimular a noção de que não existem limites à capacidade
de conquistar o apoio popular a uma causa, e que se a mensagem for
suficientemente empática as pessoas acreditam na ideia que lhe está
subjacente.
Surgiram algumas vozes ao longo dos anos a exigir maior neutralidade
na comunicação propagandística, que deve ser suportada por princípios
éticos e morais para impedir uma deturpação deliberada da realidade, ou
desinformação. Ou seja, se não existirem limites factuais e de
transparência o público não compreende as intenções da propaganda, que
pode provocar o descrédito das próprias instituições que visa promover.
A comunicação digital veio agravar esta preocupação, pois permite
disseminar informação sem nenhuma referência à sua origem, nomeadamente
através das redes sociais que se tornaram a principal plataforma das
“fake news”. Com esta rápida propagação de mensagens não substanciadas
em factos estão mais fragilizadas as culturas em que a parcialidade
ideológica é assumida pelos media, e que está a ameaçar a sua
integridade: se tudo pode ser mentira o mesmo é válido para a verdade.
Uma das matérias de estudo da psicologia social é precisamente a
persuasão. Na teoria da comunicação, a persuasão está associada a
fatores como credibilidade, conhecimento, confiança e atratividade.
Contudo, existe um princípio designado de “avareza cognitiva” que se
refere à tendência da mente humana para resolver problemas da forma
simplista e que implique menos esforço, independentemente da
inteligência do indivíduo. A sua aplicação ao discurso político, com uma
manipulação consciente das mentes, gostos e ideias das massas, tem sido
uma característica dominante da sociedade democrática.
Seja qual for o propósito da propaganda – enaltecer um líder,
mobilizar uma nação, intimidar um inimigo, condicionar um eleitorado –, a
sua tarefa está facilitada se a desinformação que é servida à opinião
pública for do seu agrado. A ideia de que o eleitor é uma marioneta é
vista como redutora na sociedade moderna, mas as evidências dizem o
contrário. O melhor exemplo é Donald Trump, que todos os dias mostra ao
mundo como é possível manipular o eleitorado com mentiras que este quer
ouvir.
Não é relevante saber se o faz de forma consciente ou se o seu
comportamento é condicionado por patologias narcisistas e despóticas. O
importante é perceber que a sistematização destas narrativas falsas é
propagada pela própria comunidade que por passar a “defender” a causa
não vai agir contra si mesma. O contraditório é menos persuasivo quando
recorre a uma base de verdade, que por definição requer um maior esforço
de interpretação.
Com a opinião pública entorpecida pelas redes sociais,
maioritariamente desinteressada, a manipulação está facilitada. Como se
percebe pela história ao longo dos séculos, não estamos perante um
impasse civilizacional ou democrático, mas em pleno combate,
experimentado, impiedoso e feroz, pela opinião pública. Neste combate
não existem regras, não existem limites, e a julgar pela permissividade
dos eleitorados aos comportamentos grotescos dos seus candidatos, não
existe memória.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 02/09/20
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