27/09/2020

EDSON ATHAYDE

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O Diabo nosso de cada dia 

 O Deus que eles seguem é, sublime paradoxo, um Deus desalmado. É um Deus que gosta de ostentar, que ama o ouro nas paredes dos templos, que acha graça em disputar eleições. É um Deus criado para punir, matar, destruir. É um Deus que eu não acredito, mas que me dá medo mesmo assim.

Se 2019 foi o ano das distopias apocalípticas nas plataformas de streaming, 2020 está a ser marcado por séries e filmes que discutem as dores e as delícias de ser religioso.

“Watchmen” (HBO), uma das séries mais premiadas no último Emmy, foi lançada já no final do ano passado e trazia algumas sementes sobre o tema que acabaram por frutificar noutras ficções.

Em “Watchmen” a religiosidade está presente de forma mais oblíqua. Um dos personagens principais, Doctor Manhattan é nada menos do que Deus, Ele mesmo, que volta à Terra para se sacrificar por nós mortais.

Já “Raised by Wolves” (HBO) e “O Diabo de Cada dia” (Netflix), produções recém-estreadas, são bem menos subtis. A religiosidade é o tema central das duas histórias.

“Raised by Wolves” é uma série criada e, nalguns episódios, realizada por Ridley Scott (em grande forma, construindo uma ficção científica interessantíssima, como há muito não fazia). Nela encontramos um futuro em que a raça humana está em extinção na Terra. Os últimos sobreviventes partem rumo a um planeta habitável. Saem em dois grupos. Um deles é religioso e acredita nas escrituras ditadas por Sol, que parece muito com o Deus da Bíblia. O outro grupo é composto por dois androides e alguns embriões da nossa espécie. Caberá ao casal de robôs criar uma geração de humanos que acredite apenas na ciência, refutando qualquer laivo de religiosidade.

Os dois grupos são inimigos, claro. E são os conflitos criados por essas visões de mundo que tornam a série tão boa.

“O Diabo a Cada dia” é uma longa estrelado por Tom Holland (o novo Spiderman) e realizado pelo americano/brasileiro António Campos. Aqui somos apresentados à saga de Arvin Russel, um jovem morador do Bible Belt americano, uma terra de vacas, consanguinidade descontrolada e pastores fanáticos. O excesso de Deus nas vidas das pessoas que vivem naquela região leva a que também exista uma omnipresença do Diabo. Os personagens cometem pecados capitais justamente por não se permitirem pecadilhos menores.

Essas ficções servem como excelente ponto de partida para enquadrar alguns aspetos do mundo contemporâneo.

Numa espécie de “recall” da Idade Média, vivemos as últimas décadas a dividir o mundo entre cristãos e muçulmanos. Apesar de falsa, precária, reducionista, deu jeito tal arrumação. Gostamos de coisas binárias, certo ou errado, preto ou branco, bom ou mau, somos animais pouco sofisticados e maniqueístas.

Como estamos a regredir socialmente, a divisão que interessa agora é ainda mais torpe, é a que promove a cisão entre cristãos radicais e os “outros” (ou seja, todos aqueles que não levam a sério leituras do Velho Testamento ao pé da letra e descontextualizadas de qualquer ciência ou sensibilidade histórica).

Basta tentar falar de religião com os adeptos de Trump para perceber que o buraco é mais em baixo. Ou com bolsonaristas.

O fervor que sentem dever ao grande líder encontra espelho numa devoção a um Deus perverso, impiedoso e extremamente ocupado com o que as pessoas fazem ou não com os próprios orifícios.

O Deus que eles seguem é, sublime paradoxo, um Deus desalmado. Um Deus obtuso e furioso, que renega a humanidade, pune a sexualidade, é hipócrita, ambicioso, vaidoso. É um Deus que gosta de ostentar, que ama o ouro nas paredes dos templos, que acha graça em disputar eleições. É um Deus criado para punir, matar, destruir. É um Deus que eu não acredito, mas que me dá medo mesmo assim.

Ou como diria o meu Tio Olavo: “Deus salve-nos desse Deus.”

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS" - 23/09/20

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