05/09/2020

GUILHERME RAMOS MEYERS

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Diário de um médico 
em viagem em tempos 
de covid-19

A primeira onda ainda não acabou, mas já viajamos de aviões cheios em aeroportos europeus sem ventilação, com trabalhadores sem luvas e dizemos querer prevenir uma segunda onda!

Aqui estava eu, médico debutante, cansado mas feliz, pronto para ir para casa e descansar depois dos meses mais impressionantes desde há um século. Pensava eu, receoso, “e se for um super-spreader?” E se, ao viajar de avião, mudar de país para umas merecidas férias de Verão, der origem a um evento calamitoso de propagação do vírus? E se levar o vírus de um país para outro?

Eu, eu que deveria saber, deveria saber proteger-me e também aos outros... Pensamentos como estes não me deixaram dormir durante duas noites antes de começar as minhas férias, antes de entrar no avião, com uma saudade apertada no peito, por rever a terra natal e a família ancestral. Chamei-lhe ansiedade médica, chamei-lhe sabedoria prática.

Mas mal cheguei ao aeroporto, uma grande decepção: havia inúmeras pessoas de máscara no queixo, como se grande protecção oferecesse. Havia até alguém que andava a passear pelo portão de embarque sem máscara, e a coçar o nariz repetidamente, possivelmente orgulhoso de quebrar a regra. Os seguranças, sem luvas, tentaram indicar que eu tinha de abrir a mala e mostrar o que tinha na mochila. Mas, em vez de apontar, mostrar, dizer…, tocaram sem luvas na minha mala, sei lá eu depois de quantos outros “toques inocentes” certamente.

Depois de tantos avisos de que o tão aclamado e mal falado vírus se propaga em espaços fechados e sem ventilação, não se sente uma qualquer corrente de ar durante a espera no aeroporto, no portão de embarque. Nem de ar condicionado nem o preferido de infecciologistas, de ar livre... Já as senhoras da limpeza, essas fazem o seu melhor, ao passarem o mesmo pano por dezenas de lugares diferentes, sem nunca o lavarem. A isto chama-se espalhar o potencial microorganismo...

Mas continuemos, infelizmente. A assistente do embarque pegou nos cartões de identidade e cartões de cidadão de toda a gente que entrou no avião comigo. Agarrou em todos com os mesmos dedos suados e, com certeza, com inúmeras bactérias e outros organismos que agora todos neste voo partilhamos, ao mais alto nível, na nossa identidade.

Mas continuemos. Obrigação de usar máscara no avião durante três horas? OK, se é para nossa segurança... Mas será seguro, falemos seriamente, viajar no tal avião de regresso a casa, se este acabou de aterrar, eu vi, e vi que todos os passageiros saíram do avião cinco minutos antes desta nova leva entrar? Que tipo de higienização houve? Que tipo de protecção oferece esta transportadora?

Mas cá ficámos, à espera, de pé, no vento das 21h, a ver os passageiros a desembarcar... Muitos houve (inocentes) que se apinharam, na pressa de entrar no avião, à frente da fila, não respeitando qualquer distância para além daquela fina camada de ar quente que separa dois corpos. O meu lugar, no avião, esse também estava quente ainda.

Vim sentado com uma senhora desconhecida à minha esquerda e um jovem igualmente incógnito à direita. Distância social? Não. Barreiras de protecção? Nunca. Cuidados com os consumidores, respeito pela saúde de quem permite à transportadora aérea sobreviver? Jamais.

Sim, estou desiludido. Muito desiludido.

Que ingenuidade, bater palmas da varanda, mas voltar tudo ao mesmo! Que ignorância, que vai do incumprimento ao cumprimento mínimo das medidas mínimas, que nos vai levar a uma segunda vaga, ou onda, ou o que lhe queiram chamar! Que ironia. A primeira onda ainda não acabou na Europa, mas já viajamos de aviões cheios em aeroportos europeus sem ventilação, com trabalhadores sem luvas e dizemos querer prevenir uma segunda onda!

A primeira onda ainda não rebentou na praia... As algas que nos ficarão agarradas aos cabelos ainda bóiam tranquilamente na água, esperando prender-se ao nosso corpo sem hesitação e sem pressa. E nós, que fazemos? Vemo-las aproximarem-se, puxamo-las para nós com o braço fazendo pequenas ondas na água, dizendo para nós próprios que o mar é mais forte do que nós e que as algas irão para outro lado.

No meio disto tudo, não me consegui conter. Ri. Ri alto. Ri e suspirei. Então, por causa da pandemia, não há comida quente nem bebidas quentes no catering do avião. Não há sanduíches. Não, não há. E é obrigatório usar a máscara, lavar as mãos, etc.. Mas sabem, queridos leitores, o que há?
“Snacks, sweets, soft drinks” — tudo o que é bom para o sistema imunitário! É claro, para beber um café é preciso tirar a máscara, mas para beber uma cola ou comer um chocolate parece já não ser.

Depois, claro, agora já só se aceitam cartões contactless. Inserir o PIN é coisa do passado, como dizia a canção. Não se pode inserir o PIN, com medo da infecção. Mas podemos apertar e desapertar o cinto (aquele que alguém desapertou há menos de 45 minutos), podemos abrir as portas acima das cabeças, podemos abrir e fechar a porta da WC... Curioso. E tudo faz tão pouco sentido.

Para piorar os meus humores, os tripulantes distribuíram um formulário onde eu deveria depositar todas as minhas informações pessoais, para um possível contacto e rastreio com a bela frase “fazemos tudo pela sua saúde”. Desculpem, mas isto é gozar com quem trabalha, literalmente. Não oferecem uma máscara — como prevenção —, nem uma caneta ou um chá (para não falar de um lugar de distância entre dois passageiros que não se conhecem...), e pretendem que os passageiros forneçam a sua morada, número de telefone, email... Tudo o que efectivamente já têm da compra do bilhete…!

Para embarcar, como já tinha referido, foi “tudo ao molho e fé em Deus” — incluindo aqueles típicos passaritos perdidos que atravessaram o avião todo, entrando na entrada da frente, para se sentarem na última fila (e havendo uma porta traseira aberta) — mas agora, para o desembarque, a tripulação parece ter-se lembrado de que há regras a cumprir. Só nos devemos levantar quando a fila da frente já estiver a uma distância de segurança, permitindo a distância social que faltou no embarque e durante a viagem. Vale isto de alguma coisa, quando vi vários passageiros a tirar a máscara, ou a respirar com o nariz a descoberto durante a viagem?!... Será assim tão importante manter a distância de segurança para sair deste caixão voador?

As férias continuaram, as praias com semáforos, o distanciamento social cumprido no papel, visto que as esplanadas estão apinhadas. Mas o que se há-de fazer? Há pessoas que só têm rendimentos para o ano todo durante esta época. Fica difícil, eticamente, julgar estes pequenos comerciantes das estâncias balneares.

Este julgamento é bem diferente quando se trata de órgãos e instituições, empresas, companhias que geram lucros de milhões todos os anos, faça chuva ou faça sol. Tomemos o exemplo do banco do Estado. Como bom emigrante, aproveito os poucos dias de férias para regularizar a minha situação bancária no país. Deparo-me com dez pessoas mais velhas que eu, todos com mais de 60 anos certamente, numa fila que pouco tem de indiana. Parecemos bolas de bilhar à porta do golo, todas querendo entrar e por pouco não nos batemos por isso. Queixas de que ninguém vem distribuir as senhas, de que estão à espera há uma hora de pé (um senhor, pelos seus 80 anos, pedia para se sentar...), que a fila não avança. Não há sequer uma folha A4 escrita à mão colada na montra, algo que explique o processo, que diga que alguém os virá buscar, algo que permita às pessoas um nível mínimo de controlo e compreensão.

No meio da confusão, gera-se o caos. Clientes abrem portas, mexem em maçanetas, para ir procurar uma senha. Uma porta, que normalmente está aberta, está agora fechada, fazendo do banco uma exemplar incubadora, plena de pessoas em risco ignorantes do risco que correm, com a justificação de que estas medidas são para segurança de todos. Assim se propagam vírus. Políticas mal feitas, protocolos obscuros, a população o mais desinformada e confusa possível.

Há que compreender que o público geral é normalmente desinformado. Em matérias de saúde, especialmente, estamos a anos-luz do chamado “consentimento informado”, o que nos revela o fosso que existe entre a comunidade científica e o público que tenciona proteger. Mas a este nível de falta de informação juntaram-se outros factores: informação que se contradiz rola nas televisões, jornais, rádios. Fala-se muito de números de mortes e infectados, mas não se vêem políticas específicas para contrariar o contágio. O que gera enorme cepticismo e, portanto, comportamentos aberrantes. De que vale usar máscara, se estamos todos ombro a ombro? De que vale haver desinfectante de mãos, se todos temos de rodar a maçaneta após a higiene das mãos?

As férias passaram, e o retorno era necessário. Ao chegar ao Aeroporto Humberto Delgado, deparei-me com um manancial de terminais de self check-in e self baggage drop​, máquinas avançadíssimas e que, de novo, colocam em risco centenas de empregos, pelo que havia somente uma dúzia de assistentes operacionais (não muito bem-educados, diga-se de passagem). Os leitores atentos já terão percebido o problema dos terminais com touchscreen sem eu ter de o descrever… É claro, vai havendo “postos de desinfecção”, mas são quase imperceptíveis.

Passaram algumas semanas, e o segurança, este já de luvas, queria agarrar no meu telemóvel para o passar pelo scan e confirmar o meu check-in. Algo que eu consigo fazer sem ajuda, e que quero fazer (ao contrário de ter de despachar a minha bagagem) depois de o ver a tocar em todos os telemóveis das pessoas à minha frente na fila, sem nunca desinfectar as mãos (ou as luvas, neste caso). É que as luvas são para a sua protecção individual, e claro que ele as deve usar. Mas não protegem certamente a transmissão de microorganismos entre as centenas de viajantes que por ele passaram. Já os tabuleiros (onde colocamos malas, portáteis e líquidos) desconfio que vão sendo desinfectados (assim como os carrinhos para malas, à entrada) com regularidade. Para o provar, havia uma mesa que era também um posto de desinfecção e o local onde aparecia escrito “tabuleiros desinfectados” — no entanto, esta estava vazia, não havia lá nenhum tabuleiro, dito desinfectado.

Temos depois o problema típico das pessoas que não compreendem a simples regra “num espaço fechado, use máscara”. Porquê tirar a máscara para falar ao telefone? Claro que excluo deste comentário aqueles que retiram a máscara para comer e beber...

Na minha profissão, eu tenho de examinar rotineiramente pessoas em risco (idosos com doenças variadas, com certeza cardíacas e renais) estando eu e o paciente de máscara... Imagine-se ter de examinar a presença de tremores do queixo ou da língua, com pessoas que falam naturalmente baixo, nestas condições. E não me queixo. É para a segurança dos meus pacientes, e para a minha própria. Mas só posso sentir-me “traído”, quando me batem palmas nas varandas e depois não conseguem tapar o nariz num aeroporto, ou num comboio.

Curiosamente, a zona onde vi realmente cumprirem-se distanciamentos foi na zona de fumadores. Que bem-comportado este estrato social, que se mantém afastado para poder tirar a máscara e fumar, para de seguida a colocar.

A viagem de volta foi muito melhor do que a de vinda para Portugal, embora tenha visto igualmente os passageiros anteriores a saírem daquilo que para mim é agora um quase-caixão. O avião ia mais de meio vazio, as distâncias cumpridas, à entrada foram-nos distribuídos toalhetes de desinfecção. Deve ter sido a primeira vez em que o avião descolou a horas. Surpresa das surpresas. A pandemia não tem apenas coisas más, está visto.

Fiz o teste ao chegar ao aeroporto luxemburguês. Parece-me uma óptima política, oferecer o teste a quem chega, em vez de impor quarentena a todos os viajantes.

Na primeira segunda-feira de regresso ao trabalho, no comboio, vejo que nada mudou nas mentalidades. Dois jovens riem e comem no comboio, nas suas vidas, sem máscara. Um senhor idoso passa por mim para ir às compras, com a máscara tapando só a boca. Uma senhora coloca a máscara após estar sentada (sim, minha senhora, aqueles 30 metros desde a entrada da carruagem, sem máscara, poderão ser a causa para a sua tosse uma semana depois).

Como dizia anteriormente, a segunda vaga ainda não chegou, à hora em que escrevo estas linhas. Mas com certeza não tardará. Um Inverno aproxima-se a passos largos, e nós teimamos em achar que temos a situação controlada…

* Médico-investigador na Parkinson Research Clinic/Centre Hospitalier du Luxembourg

IN "PÚBLICO"
05/08/20

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