05/08/2020

CARMO AFONSO

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 O racismo mata – Deixe já

Numa entrevista recente à TSF o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, entre muitos e bons temas, falou de racismo e da luta antirracista. Afirmou que estaria sempre na primeira linha de combate ao racismo e que foi fundador da associação SOS Racismo, em França e que esse é um dos grandes orgulhos da sua vida

Sobre os contornos da atual luta antirracista manifestou a sua total discordância e caracterizou-a como sendo racismo invertido, basicamente movimentos que fingem combater o racismo mas que encerram cada um na sua essência racialista pois, na sua leitura, assentam num princípio segundo o qual as mulheres e os homens brancos não podem entender o racismo.
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Esta parte da entrevista é um possível ponto de partida para uma reflexão sobre o racismo e a atual luta antirracista. 
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Existe um movimento antirracista com um alcance e um radicalismo sem precedentes – Black Lives Matter (BLM) – e são impressionantes os relatos do que tem conseguido junto de uma comunidade que à partida não pareceria tão sensibilizada para o tema, junto de estruturas capitalistas. 
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Os seus ativistas, como forma de luta, entre várias ações de rua e nas plataformas digitais, partiram montras e não numa linguagem metafórica. Resultado: marcas como a Marc Jacobs, que viram as suas lojas danificadas, vieram dizer que uma vida é que não poderia ser substituída e que racismo sim é violência. Mais, contribuíiram com donativos para a causa. Este é um aspeto importante: “open your purse” ou “put their money where their mouth is”. Este movimento quer menos conversa e mais ação efectiva. Querem mudar as coisas? Façam donativos. Estão a conseguir ambos. 
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Parte da comunidade que sempre se colocou, mais ou menos ativamente, ao lado da luta antirracista, sobretudo brancos, contesta a virtude destas reivindicações, a sua fundamentação e sobretudo os métodos e a da forma de luta. Estas pessoas reconhecem a existência de racismo, e por isso a necessidade e pertinência da luta, mas não se reveem nos novos movimentos.
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Já lá vamos.
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É que existem ainda pessoas que negam a própria existência de racismo. Em Portugal esta negação não é um mero: “Ah, eu não acredito que exista racismo” mas sim um “Eu asseguro que não existe racismo”. Qual é a relevância desta diferença? É que quem assegura que não existe racismo não aceita a luta antirracista e classifica-a, não de inútil mas sim de provocatória. Quem assegura que não existe racismo silencia as vítimas, encontra justificações para comportamentos discriminatórios, tantas vezes criminosos, e abre caminho para a sua perpetuação.
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Parte do grupo que assegura que não existe racismo propõe-se neste momento, por cada manifestação antirracista, ir igualmente para as ruas e dizer: o que vocês, negros, relatam e dizem sentir, não tem razão de ser.
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Uma pista: se não detetas que existe racismo em Portugal, não serás negro, podes não estar atento ou podes simplesmente ser racista. 
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Imaginemos uma manifestação de mulheres que se dizem vítimas de violência doméstica ou que querem denunciar casos de violência doméstica que conhecem e que a resposta dos visados agressores é irem igualmente para a rua fazer a sua própria manifestação. Dirão: não existe nenhuma violência doméstica, estas mulheres que dizem existir tal coisa não merecem credibilidade.
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Se essas pessoas consideram que não existe violência doméstica será então um tema que não lhes diz respeito: se não são vítimas, se não são agressores, se não reconhecem a existência de vítimas quanto mais a necessidade de as auxiliar, que papel ativista lhes resta nesta luta?
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Esse ativismo é apenas uma boa concretização da sua ligação à violência doméstica. Porque quereria um homem que é contra a agressão de mulheres ir para a rua manifestar a sua indignação por existirem mulheres que afirmam que existe e que são vítimas dela? Porque entendem a verificação da existência de violência doméstica como uma afronta pessoal? Mais: como podem demonstrar que não existe?
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A existência de racismo em Portugal é um facto e este artigo não é de todo sobre essa discussão.
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Voltemos à entrevista, é ela que levanta a discussão que poderá persistir: será o movimento BLM um movimento extremista e ele próprio racista? Esta análise é de extrema importância pois não se pode falhar outra vez. Não se pode voltar a ignorar quem luta pela igualdade.
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A luta antirracista, como outras lutas que se desenrolam há séculos - e aqui é mesmo inevitável a sua comparação com a luta feminista, com a luta dos trabalhadores e, mais recentemente, com a luta LGBTQIA+ – é a luta natural dos próprios, dos que sofrem a discriminação e de quem luta pelos direitos em causa.
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Estranho seria ter um sindicato de mineiros representado pelos donos das minas. Claro que existe um papel para quem está na posição de reconhecer direitos e um papel para quem, não sendo vítima de racismo, não aceita que outros o sejam e sim estes papéis são fundamentais.
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Mas recuemos:
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Todas estas lutas começaram pela tentativa de reconhecimento de questões básicas e que estão ultrapassadas Alguns exemplos são o direito de voto das mulheres, o direito a férias no caso dos trabalhadores e a abolição da escravatura.
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À distância parece fácil pelo nível de injustiça que estava instituído e que permitia uma violação de direitos que hoje ninguém toleraria. 
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Parece fácil mas não foi.
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Mulheres, operários e homens negros perderam a vida na luta por direitos de elementar justiça. Existiu sempre uma oposição por parte de quem os deveria reconhecer. Uma curiosidade: se fizermos uma retrospetiva esteve sempre no topo desta cadeia o homem branco, heterossexual e abastado. É um facto e é incontornável. Ainda hoje assim é.
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Adiante.
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A questão é que essas lutas continuaram e os seus objetivos nunca se deram por alcançados. Mais, os seus objetivos foram ganhando ambição e à medida que isso aconteceu encontraram sempre bolsas de resistência. É como se quem o deve fazer insistisse historicamente num “já chega, o que querem mais?”
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O reconhecimento de direitos exigiu sempre luta. Depois da abolição da escravatura, a comunidade branca não teve a iniciativa de considerar que somos todos iguais. Cada passo em frente foi suado, exigiu dedicação e sacrifícios, às vezes da própria vida, de muitos.
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O movimento Black Lives Matter é mesmo protagonizado por ativistas negros e diz-nos que é assim que deve ser. Trata-se de um movimento coletivo e para o coletivo não existe outra alternativa que não a de ir ler e ouvir o que têm para dizer. A história ensina-nos que temos de o fazer.
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Este artigo é um incentivo, pretende ser, à pesquisa e leitura do que dizem e escrevem os ativistas deste movimento, de quem pensa e trava esta luta. E porque não fazer um resumo desses conteúdos e uma análise crítica do que representam? Porque não é essa a sua vontade. Não querem ser interpretados e que a sua mensagem triunfe através de um porta-voz branco perante a comunidade branca. Há que entrar pela internet e usá-la no que tem de melhor: a disponibilização de conhecimento. Vão à fonte.
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Se desse conhecimento ainda resultar uma discussão sobre a bondade deste novo ativismo, ela que tenha lugar, mas tenham presente que quem está mesmo na linha da frente não a quer ter. A violência e a morte fazem perder a paciência.
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Se a discussão continuar no “existe ou não existe racismo em Portugal” então boa sorte, o racismo continuará a matar. Estar na Constituição e no Código Penal não basta. Que se afixem cartazes em todas as esquinas das cidades, em todas as escolas, em todas as esquadras de polícia, em todos os tribunais, à entrada das praias e das salas de espetáculo. Que esses cartazes mostrem as imagens do que pode causar o racismo e que diga as palavras todas. E que tenha nomes. Existe um novo: Bruno Candé.

IN "EXPRESSO"
03/08/20
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