08/07/2020

PEDRO NORTON

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Dar liberdade ao futuro

É urgente perceber que a resiliência é um fator fundamental de competitividade

Se há coisa que fomos forçados a aprender com esta crise foi que a Natureza pode condicionar, de forma brutal, o nosso futuro coletivo. Falo naturalmente da tragédia sanitária que atingiu dez milhões de pessoas e causou meio milhão de mortes. Mas falo também das consequências económicas com a recessão mais abrupta da História, das consequências sociais com o flagelo do desemprego à cabeça destas e das consequências políticas que ainda estão largamente por definir, mas que podem ser, para o bem ou para o mal, profundas e muitíssimo duradouras. Nunca, na nossa História recente, tantos se terão sentido simultaneamente tão impreparados e tão impotentes. Nunca, para tantos, se terá suspendido tanto o futuro.

Para o mundo empresarial a lição a extrair é cristalina. Não se trata, como alguns gostariam, de declarar o fim do capitalismo e da globalização ou de advogar o decrescimento. O mercado continua a ser o algoritmo mais eficaz para guiar a tomada de decisões empresariais. Mas, isto dito, é preciso reconhecer que temos de alterar profundamente os dados da equação, introduzindo variáveis e restrições novas nos modelos decisórios. É urgente, por exemplo, perceber que a resiliência é um fator fundamental de competitividade. Que as empresas têm de ser capazes de antecipar os riscos associados às alterações globais da sociedade, em particular às ligadas à ação da Natureza, tais como a crise climática ou a escassez de recursos naturais. Mas é sobretudo imprescindível que sejam capazes de fazer uma gestão rigorosa das relações entre o capital natural e as suas atividades económicas e que, de uma vez por todas, internalizem o valor da Natureza nos seus processos de tomada de decisão.

Menos evidente será porventura fazer esta problematização no campo das decisões políticas. Mas a verdade é que a nossa fundamental dependência da Natureza, agora de novo flagrantemente exposta por via de uma crise sanitária, devia obrigar-nos igualmente a refletir sobre a legitimidade que temos para tomar decisões (ou para adiar decisões) que, exaurindo recursos ou alterando equilíbrios naturais fundamentais, produzam efeitos profundos e duradouros para além do nosso próprio horizonte de vida. Dito de outra forma: qual a legitimidade política das gerações presentes de condicionarem, por ação sobre a Natureza, o futuro de gerações às quais nem sequer foi ainda dada uma voz?

O tema, absolutamente decisivo, não tem uma solução evidente. A verdade é que as nossas instituições democráticas, em boa parte herdadas do constitucionalismo de XVIII, não têm processos de legitimação intergeracional. Até porque, obviamente, não podemos, nem poderemos nunca, auscultar os que ainda não são.

Mas será o problema verdadeiramente insolúvel? Será verdadeiramente absurdo dizer que, em nome dos que serão, poderemos limitar a ação e o poder de decisão dos que, no futuro, já não serão? Uma única coisa parece certa. A dimensão temporal terá, mais cedo ou mais tarde, de ser enxertada no edifício demoliberal. De outra forma, agudizar-se-ão até à insustentabilidade os problemas da sua legitimação política.

Na gestão como na política, importa, no fundo, dar liberdade ao futuro.

IN "VISÃO"
06/07/20
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