31/07/2020

DANIEL DEUSDADO

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Exportar bombeiros mortos-
  decreto sobre a nossa pobreza

Este ano morreram oito e nos últimos 40 anos já foram 229, segundo o Observador. Porque morrem tantos bombeiros em Portugal? É um pouco como perguntar aos bombeiros de Chernobyl porque morreram tantos depois da explosão na central nuclear. É fácil de perceber que tiveram de acudir a um fogo com radiação fora da escala humana - não tinham escolha e, portanto, sucumbiram centenas, sem apelo nem agravo.

Ontem Chaves ardia, esta semana Oleiros ardeu sem parar, antes foram outras localidades, amanhã haverá mais. Na nossa memória estarão por muitos anos Pedrogão, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos (17 de Junho de 2017). Mas também o 15 de Outubro do mesmo ano, com fogo por todo o Norte e Centro. Num só ano, 117 vítimas civis.

Estive esta semana a filmar em Trás-os-Montes, no meio de sobreiros, na zona de Macedo de Cavaleiros. Estavam 37 graus e a humidade relativa era de 18%. Os pés queimavam, mesmo com calçado resistente, e o ar estava irrespirável. Portugal tem vivido dias de calor quase insuportável. Estamos literalmente a arder.

Portanto, se quisermos mudar para evitar maiores tragédias, temos de fazer algo. Os extremos climáticos estão à vista, diariamente.

Começo por dizer que não defendo a perda de rendimento dos pequenos proprietários que têm eucaliptos ou pinheiros, mas como dizia um autarca de uma região a arder, não se pode adiar mais o emparcelamento por decreto (e dividir a riqueza por todos). Quer isto dizer que não podemos continuar a deixar milhares de hectares povoados por estas duas espécies em contínuo, porque estes fogos há muito ultrapassaram a escala humana. Isto apesar de se notar uma enorme determinação e melhores técnicas desde que o Governo criou a Agência para os Fogos Rurais e colocou na liderança Tiago Oliveira, um extraordinário especialista em incêndios que abandonou o conforto de uma empresa de celuloses para liderar um serviço público essencial.

Um homem pode fazer alguma diferença, mas não faz toda a diferença. Sobretudo porque mudar a paisagem portuguesa demorará décadas, principalmente quando vivemos um jogo de ilusões

Na prática, Portugal não muda. Ainda recentemente, o Conselho de Ministros aprovou mais um investimento de alguns milhões de euros, de fundos europeus e nacionais, para ampliação de uma fábrica de papel próxima de Viana do Castelo. Tal como continuam a ser apoiados milhões de euros para a melhoria da produtividade dos terrenos de eucalipto. Ora, sem medidas em contraciclo, é como se continuássemos a manter o veículo a toda a velocidade na direção do abismo. Só há intenções, mas de facto nenhum Governo quer assumir perdas de receitas e empregos nestas indústrias predadoras.

No entanto, há um custo permanente: o fogo já expulsou a maioria das pessoas para o litoral e dizimou ecossistemas. Agora só falta matar quem ainda lá está, ou vitimar bombeiros pela escala do que lhes sucede e desorienta.

Isto está silenciosamente previsto no nosso modelo de sociedade que olha para cada dano do fogo como uma consequência colateral menor - neste caso, enfim, bombeiros... risco do ofício... Quando, na verdade, o que está a arder é o país, há décadas, e isto não vai acabar. A temperatura é cada vez mais extrema e só por milagre não ardem áreas mais vastas.

Habituamo-nos a este pobre modelo de desenvolvimento baseado nesta floresta industrial. A esmagadora maioria da população, como está no litoral, preocupa-se zero e não obriga os sucessivos Governos a mudar. E os bombeiros que morrem não são pessoas "importantes", não fazem parte do nosso panteão civilizacional, não suscitam uma indignação de massas.

Em paralelo, 250 milhões de euros por ano são gastos no combate a fogos como custo público. Claro, a prometida lei para criar uma taxa sobre estas indústrias (e apoiar o combate a incêndios) vai dando voltas, mas há zero euros cobrados até hoje.

A pergunta que está à vista há muitos anos é esta: cada um destes 229 bombeiros que perdeu a vida nos últimos 40 anos pesa quanto em exportações? Qual o valor dos 117 civis que tombaram em 2017? Quantas mais vítimas são necessárias para que se usem, de uma vez por todas, os milhões europeus e mudar, histórica e definitivamente, a paisagem portuguesa? Podemos viver sem isso? Não podemos. Mas só mudamos impulsionados por tragédias cada vez maiores.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/07/20

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