19/05/2020

MANUEL CARVALHO DA SILVA

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Que tempo novo vem aí?

Vai-se desenhando um novo tempo carregado de velharias e armadilhas.

Só uma forte politização da crise, um debate político que evidencie as contradições, injustiças e irracionalidades do regime socioeconómico em que vivemos pode descobrir formas de travar os descalabros e o sofrimento que se desenham no horizonte, e gerar lastro para mudanças positivas. O susto "simétrico" produzido pela pandemia no seu início já é passado. Muitas juras de solidariedade são esquecidas e apresentam-se de volta o egoísmo e o utilitarismo.
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É preciso remar contra a maré que está a encher. A última semana confirma que não podemos ficar à espera de solidariedade da União Europeia (UE). Dali não se perspetiva mais que uma montanha de crédito (aumento da dívida), acompanhado de algumas subvenções para disfarçar, na certeza de que tudo pagaremos com língua de palmo. A hegemonia do euroliberalismo, assumida pelas maiores forças políticas e económicas nacionais, impõe-nos o seguidismo face aos poderes dominantes na UE e o perigoso adiamento da preparação do país para os desastres europeus que pairam no ar. Este fechamento favorece o avanço das forças ultraconservadoras e fascistas que agora procuram engordar cavalgando aspetos dolorosos da crise. Esta evidência, todavia, não afasta o velho vício de alcunhar de antieuropeísta quem afirma ser preciso pensar em novas soluções. 
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A profundidade dos bloqueios do país na sua matriz de desenvolvimento, no perfil da economia, nas insuficiências do Estado para assegurar os direitos fundamentais às pessoas, no desequilíbrio das relações laborais em desfavor dos trabalhadores, na falta de coesão territorial, na rutura de solidariedades e nas desigualdades, estão muito para além dos rombos provocados pela pandemia: são estruturais. Mas quando se ensaia a retoma da atividade ressurge em força a defesa de velhas políticas geradoras desses bloqueios. 
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Com a agressividade típica de quem se fecha por falta de razão, o velho centrão de interesses ressurge em força, e os seus porta-vozes tentam o espezinhamento intelectual e político de quem busca alternativas. Quem questiona a entrega de mais 850 milhões de euros ao Novo Banco antes de uma informação clara é chamado de irresponsável, de colocar o povo a odiar a Banca. O que o povo detesta é a corrupção, os roubos feitos a partir da gestão e de resoluções desastrosas, a sacralidade dos compromissos com a Banca em detrimento dos cidadãos. Ora, quando não há respostas claras fica exposto um enorme campo de manipulação para oportunistas.
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Perspetiva-se o enfraquecimento dos compromissos para consolidar o SNS, o sistema de ensino, a proteção dos mais pobres e dos trabalhadores. A grande prioridade colocada ao Estado e ao Orçamento do Estado pelo centrão é salvaguardar os direitos de propriedade e consolidar a coletivização dos prejuízos. O Estado ter posições decisivas em setores estratégicos da economia, nem pensar. Até o primeiro-ministro é criticado se diz que meter dinheiro na TAP deve ter como contrapartida o Estado ficar com poder decisivo na empresa. A CIP reclama um fundo público para salvar empresas, mas acrescenta logo que o Estado não pode meter o nariz na gestão.
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Dos defensores desta conceção de regime socioeconómico não se espera nada de novo.
 
* Investigador e professor universitário

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