02/05/2020

HELENA PITÉ

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A saúde não pode 
ser posta em espera

O telefone toca mas ainda estou a trabalhar. O mesmo número… insiste. Peço para deixar mensagem: “Doutora, sou seu paciente mas estou a ligar por causa da minha mãe. Doutora, quando puder veja a mensagem, é importante. Posso falar assim que possível?” Assim que termino a consulta, devolvo a chamada. Percebia-se que algo não estava bem. O filho ligava porque a mãe já não conseguia falar. Teve de ser ele a contar-me o que se passava.

Há duas semanas que a asma, uma doença respiratória crónica que afecta cerca de um milhão de pessoas em Portugal se estava a agravar. “Doutora, a minha mãe não me disse nada, não quer ir ao hospital, tem receio deste vírus… mas está a usar o inalador de SOS para conseguir respirar.” E continuou: “Não consegue terminar as frases, cansa-se muito até a falar… usa várias inalações do inalador de SOS, aí umas quatro ou cinco de cada vez, mas usa cada vez mais, agora já é de hora a hora.” Não precisávamos de mais, era claramente uma situação para cuidados médicos imediatos. Não queria ir, mas o agravamento dos sintomas, a pressão e a angústia dos familiares e a recomendação médica expressa, fizeram com que finalmente a doente recorresse a cuidados médicos. A asma estava descontrolada. Foi atendida prontamente no hospital. Não era, nem é covid-19. Era “só” asma, que lhe ameaçava a vida.

Maria (nome fictício) tem rinite alérgica e asma há mais de 30 anos. Já tinha ficado internada no passado mas não tinha uma “crise” há mais de cinco anos. Era acompanhada regularmente em consulta, cumpria o tratamento preventivo diário. Mas este vírus assustou-a, ouviram-se muitos receios quanto ao tratamento que fazia e por isso reduziu-o… e parou-o. Começou a ter algumas queixas, “pequenas no início” mas também não foi ao médico. “Não queria ir à consulta. Sei que a asma é um factor de risco na covid-19 e também já não sou assim tão nova”, diz agora sorrindo.

Infelizmente casos como o da Maria têm-se repetido.

O novo coronavírus obrigou a grandes mudanças na vida de todos nós. Foi preciso declarar Estado de Emergência. Não se fala de outra coisa. É tudo covid-19. Mas a saúde não pode ser posta em espera. Precisamos sempre de saúde e agora podemos dizer que ainda mais. As outras doenças continuam a existir. Doenças crónicas, doenças agudas, todas se mantêm e não podem ser “maltratadas”.

Não podemos aceitar que as pessoas aguentem queixas, atrasando diagnósticos e tratamentos.
Tumores que não são diagnosticadas, enfartes, Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs) que não chegam a tempo de serem tratados, cirurgias de emergência quando podiam ser feitas mais precocemente e sem complicações, tratamentos que são parados por receios infundados sem conselho médico, doenças crónicas que perdem o seu controlo por falta do necessário seguimento regular, qualidade de vida que se perde vertiginosamente, vidas que ficam em risco…

As Unidades de Saúde reorganizaram-se, de forma célere, para dar a resposta adequada a esta situação. O novo coronavírus obrigou a mudanças sim, mas que permitem a continuidade da prestação de cuidados de qualidade. Hoje há muitas mais teleconsultas, através de vídeo, do telefone, a tecnologia como ela deve ser usada, ao serviço do ser humano.

São mudanças, sim, mas positivas. Sem ter de sair de casa, o médico vai ter com o doente. Ouve-se, vê-se, fala-se, analisam-se resultados, dão-se conselhos, esclarecem-se dúvidas, orientam-se situações clínicas para o melhor tratamento, tudo isto sem riscos acrescidos de exposição ao vírus.

Crianças e alguns idosos precisam de apoio no uso de algumas tecnologias digitais ou até mesmo do telefone como sempre… Estamos cá para isso, a família, os amigos, os cuidadores. Esta via remota de acesso a cuidados médicos traz várias vantagens sobretudo neste contexto de pandemia que não está ultrapassada. Mas os casos mais graves, as urgências, sempre que não for possível a teleconsulta ou que for importante a observação directa, a realização do exame ou do tratamento, a Equipa de Saúde está presente, organizada, com circuitos cuidadosamente definidos para garantir os cuidados necessários de forma segura.

A saúde não pode ser posta em espera. Não o devemos fazer. As medidas de isolamento social, as máscaras, a higiene das mãos são essenciais, mas é muito importante também ter as outras doenças controladas, isto é, sem queixas (ou com o mínimo de queixas possível), sem valores alterados e sem necessidade de tratamentos em “SOS”. Pela qualidade de vida, pelo bem-estar e também para diminuir o risco se o coronavírus nos vier a afectar, e porque é seguro e continuamos a ter cuidados de saúde de excelência, a saúde não pode ser posta em espera.

* Imunoalergologista no Centro de Alergia do Hospital CUF Descobertas e coordenadora de Imunoalergologia no Hospital CUF Infante Santo

IN "PÚBLICO"
29/04/20

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