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* Professor universitário
IN "ESQUERDA"
03/04/20
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O coronavírus e a
“alegria de viver”
Ninguém esperava que a crise se acelerasse por via de uma pandemia com efeitos na atividade económica. O encerramento de empresas, o colapso da procura e a restrição de atividades vão desencadear uma contração drástica.
Há 102 anos a Pneumónica matava
mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Ao pesadelo da Grande
Guerra adicionava-se este novo elemento depressivo entre 1918 e 1920
(ver, a este propósito, o excelente documentário de Fernando Rosas em https://www.rtp.pt/play/p1683/e184201/historia-a-historia (link is external)).
Vencidas as duas catástrofes, a humanidade respirava de alívio e
entrava na euforia dos “loucos anos 20”, ou na “alegria de viver”. De
curta duração. O desemprego, a ascensão do fascismo e a crise de 1929
encarregar-se-iam de mostrar os limites daquele desanuviamento.
O clima de confiança só voltaria após a tragédia da Segunda Guerra
Mundial. Apesar da Guerra Fria, a humanidade entrava em nova onda de
esperança, ao ponto de se sentir imune às crises do passado. Os sistemas
de saúde e a medicina progrediam fazendo com que a esperança de vida
aumentasse, a extrema-direita passava a ser uma espécie de parêntesis da
história contemporânea e as crises económicas pareciam fortemente
atenuadas.
Um bom exemplo disto foi o prémio Nobel Robert Lucas Jr que, em 2003,
vaticinava o fim das crises ou da oscilação longa entre períodos de
depressão e desemprego massivo e períodos de expansão, que dominaram as
atenções na sequência da crise de 1929 e do debate sobre “estagnação
secular”. A narrativa dominante passava a ser a de que o ciclo está sob
controlo, os agentes económicos têm “expectativas racionais” e a
política económica deve concentrar-se na desregulação do mercado do
trabalho e financeiro e na redução dos apoios aos desempregados para
esses mercados funcionarem eficientemente.
Os tempos que vivemos são a antítese desta visão das coisas. O que só
prova que a História não pára. É certo que outros flagelos, entretanto,
se disseminaram, como o Ébola ou a Sida. Mas já nos tínhamos esquecido
da fragilidade da existência humana, que também atinge as sociedades
mais ricas e tecnologicamente sofisticadas. O coronavírus, por exemplo,
expande-se rapidamente, pelo menos nesta fase, nas zonas mais
desenvolvidas do mundo, criando um clima que muitos pensavam ser típico
das áreas pobres de África, Ásia e América Latina.
Um pouco por todo o mundo, o descontentamento popular com a
globalização financeira, a austeridade, a insegurança, as desigualdades e
o trabalho precário ajudaram a extrema-direita a voltar e a penúria
instalou-se nos países desenvolvidos com a crise de 2007. O
desmantelamento do Estado Social e as políticas de austeridade só
serviram para alimentar a expectativa de que uma nova crise estava na
forja. Já ninguém punha em causa a sua eclosão, era só uma questão de
tempo.
Ninguém esperava, no entanto, que essa crise se acelerasse por via de
uma pandemia com efeitos na atividade económica. O encerramento de
empresas, o colapso da procura e a restrição de atividades vão
desencadear uma contração drástica. Os governos têm de nacionalizar
empresas em setores fundamentais, assegurar a normalidade da
distribuição de alimentos e medicamentos, proibir os despedimentos e os
despejos, evitar a crise de liquidez das pequenas empresas, subsidiar
salários, assegurar o acesso aos serviços públicos e pôr a banca ao
serviço da economia.
Em países como Portugal o défice das contas públicas irá disparar num
contexto de elevada dívida externa pública e privada. Mesmo que o custo
da dívida não aumente, as autoridades europeias devem construir
instrumentos de intervenção, seja por criação monetária direta do BCE
para subsidiar pequenas empresas, trabalhadores ou serviços públicos em
rutura, seja emitindo Eurobonds ou dívida solidária não sujeita a
condicionalismo de austeridade, seja comprando dívida no mercado
primário.
A recente reunião do Conselho Europeu mostrou a trágica divisão de
perspetivas que atinge os seus membros, pois nenhuma destas alternativas
foi adotada, sendo que a primeira nem foi considerada. A vantagem da
emissão monetária seria a de poupar os estados-membros que dela carecem à
contração de dívida, articulando política monetária e política
orçamental. Quanto aos Eurobonds, trata-se apenas de ter em conta que o
vírus atinge todos os países da União Europeia, logo todos devem
partilhar o risco de uma resposta que a todos deveria interessar.
Persistindo este impasse, acompanhado do cinismo dos governos da
Alemanha, da Áustria, da Finlândia ou da Holanda, os países mais
atingidos por esta crise deveriam encarar a possibilidade de algum
entendimento conjunto em torno de medidas que, ainda que possam violar
expressamente regras e procedimentos comunitários, se justifiquem à luz
dos seus interesses. E devem preparar-se também para reintroduzir no
debate a possibilidade da imposição de ações unilaterais de
reestruturação das dívidas face aos credores institucionais.
Se isto continuar a não ser feito, teremos insatisfação a crescer e
um potencial de destruição pior que o da crise anterior. Ao sofrimento
das mortes seguir-se-ão ajustamentos económicos ainda mais dolorosos que
aqueles que conhecemos durante a presença da Troika. Será mesmo a
grande oportunidade para o capitalismo impor todo o programa de
transformações estruturais ainda não plenamente implantadas e de
aumentar a exploração das massas, porventura nalguns casos com regimes
políticos musculados. E adiaremos por muitos anos a “alegria de viver”.
Ainda estamos a tempo de o evitar.
* Professor universitário
IN "ESQUERDA"
03/04/20
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