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* Docente na NOVA FCSH
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/03/20
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O vírus da desinformação
já contagiou os museus
Em poucos dias, desde que a pandemia nos reteve em casa, o Google
conseguiu disponibilizar online os acervos de 500 museus. Inovação? Sim,
mas o resto é falso.
Há uns minutos li num portal ligado à
cultura: "perante esta pandemia do coronavírus, a Google Arte e Cultura
decidiu unir-se com mais de 500 museus e estão a oferecer visitas
virtuais a qualquer pessoa". Se houvesse prémios na categoria de
desinformação na cultura, esta frase subiria ao palco.
Mesmo que não conhecêssemos o projeto "Google Arts & Culture",
que é das iniciativas mais inovadoras na área da cultura desde que foi
lançado em 2011 (antes com o nome "Google Art Project"), como é que
seria possível criar visitas virtuais do acervo de 500 museus, de um
momento para o outro, em resposta à recente contingência de ficarmos em
casa?
Em Portugal e, pelo menos, no resto da Europa, o tema que
domina os blogues, páginas de redes sociais e outros websites
não-jornalísticos é a cultura. Já em 2013 o então editor de Cultura do
The Guardian, Caspar Llewellyn Smith, me dizia que o principal
concorrente da secção de Cultura daquele jornal - a mais rentável e a
preferida dos leitores, confirmava-me - era o website não jornalístico
especializado em cultura ou aquele blogger que sabia mais de música do
que toda a redação.
De 2013 a 2020, estes websites cresceram e
muitos tornaram-se "pro-ams" (profissionais-amadores) com alinhamento
editorial, equipa e modelos de negócio rentáveis. Há bons exemplos de
projetos editoriais ligados à cultura, mas outros replicam apenas notas
de imprensa, transcrevem peças de outros órgãos de comunicação ou
publicam conteúdos sem que haja um editor que assegure a sua qualidade.
Têm toda a legitimidade em existir, mas não podem apresentar-se como
órgãos de comunicação social (ou dar a entender essa qualidade
indiretamente) quando não o são. Podem ser denominados de projetos
editoriais, de criação de conteúdos ou até projetos de abordagem
jornalística (designação que, aliás, uso em contexto universitário), mas
não são órgãos de comunicação social. Já é altura de encontrar uma
designação formal para estes projetos devidamente enquadrada num
regulamento de conteúdos.
Quanto às visitas virtuais a museus,
estas não foram criadas para substituir as experiências presenciais.
Infelizmente, até alguns meios de comunicação social caíram no erro de
mencionar a iniciativa da Google Arts & Culture como se fosse
recente.
Já há algum tempo que os museus inovam em ambiente
digital e no próprio espaço museológico. A experiência do visitante pode
ser hoje presencial e digital, porque cada vez mais é a narrativa que
importa, isto é, o contexto e a história dos objetos em exposição e não
os objetos em si. Nesse sentido, a experiência estética pode ter vários
níveis: se, na dimensão física, ela começa imediatamente no espaço
público que circunda o museu (não é por acaso que alguns dos museus mais
bem-sucedidos inovam tanto dentro como fora de portas), em ambiente
digital o espaço público virtual começa no seu website ou app.
Na Europa e em contexto museológico, talvez a iniciativa digital mais consistente seja a francesa Culturespaces.
O projeto é mais conhecido por ter criado o primeiro centro de arte
digital em Paris - Atelier de Lumières - com a exposição imersiva da
obra de Gustav Klimt, mas as diversas experiências de comunicação que
criaram para monumentos históricos e museus são também interessantes (e
estão disponíveis para qualquer pessoa com acesso à Internet). Basta
aceder ao menu "Découvrir" (disponível também em inglês) dos websites do
Musée Maillol, do Théâtre Antique & Musée D"Orange ou do Cité de L" Automobile.
E,
já agora, porque há tempo, também vale a pena visitar o Google Arts
& Culture, que é muito mais do que visitas virtuais de museus. Além
de reunir a maior parte das tendências da comunicação digital da
cultura, desde a curadoria temática a vídeos a 360 graus, tem uma área de experimentação
que cruza as fronteiras entre a arte e tecnologia, concebida por
artistas e programadores criativos. Esta última vale mesmo a pena.
* Docente na NOVA FCSH
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/03/20
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