28/02/2020

TERESA PIZARRO BELEZA

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Pessoas, animais, bom 
senso e Código Penal

Qual é a razão pela qual existe a convicção generalizada de que as leis, e em especial as de natureza proibitiva (a penal, por antonomásia), resolvem os problemas sociais, económicos, políticos?

Durante doze anos a fio – desde Janeiro de 1983, data em que entrou em vigor o Código Penal de 1982, até 1995, ano em que o mesmo Código sofreu a primeira revisão profunda – que os nossos tribunais aplicaram serenamente uma lei que punia o facto de alguém cortar o braço a outrem com uma pena que correspondia a metade da pena aplicável a quem furtasse ao dono desse braço um relógio valioso, sem qualquer violência.

Previa pena de um a cinco anos (ofensas corporais graves) e pena de um a dez anos (furto qualificado, isto é, subtracção sem violência – havendo violência ou ameaça, o crime é técnica e legalmente outro, chama-se ‘roubo’ e tem outras regras).

Esta aplicação decorreu, tanto quanto sei, sem qualquer sobressalto de (óbvia, em meu entender) inconstitucionalidade. Denunciei a situação em vários contextos, em aulas na Faculdade de Direito de Lisboa, em colóquios e conferências e em publicações e escritos. Ninguém, que me lembre, pareceu incomodar-se muito com isso. Em 1995, descobriram, com espanto, que a escala de penas no Código Penal era absurda e escandalosa. Basta ler as Actas desse período para perceber esse espantoso espanto – o exemplo que dei acima é apenas isso, um de entre muitos possíveis. Também era verdade que furtar um objecto durante a noite, ou fechado em um cofre, ou no altar de uma igreja, ou… – o Furto era o crime, no Código Penal de 1982, que tinha a lista mais longa e mais pormenorizada de circunstâncias agravantes – era mais grave (um a dez anos) do que o crime de violação de uma mulher (dois a oito anos de prisão).

O problema derivou, em larga medida, da forma como a Assembleia da República, quando aprovou a Lei de autorização legislativa (o Código Penal que nos rege é um Decreto-Lei, não uma Lei em sentido formal), não reparou na absurda desproporção das penas entre os crimes contra as pessoas e os crimes contra o património, consequência da destruição da lógica interna do Projecto de Eduardo Correia, professor catedrático de Direito Criminal da Universidade de Coimbra que, a pedido do então ministro Antunes Varela, apresentou um Anteprojecto visionário em alguns aspectos (limites máximos da pena de prisão), porventura ‘ingénuo’ ou mesmo ‘crédulo’ em outros (a reinserção social como objectivo das penas e em particular da pena de prisão, conversa que se mantém no discurso oficial até hoje) e conservador ou mesmo ‘reaccionário’, diríamos talvez hoje, em outros (tratamento do crime de estupro, por exemplo; ou regulação da prostituição). A versão originária é de 1966, no que respeita à chamada Parte Especial, que é a parte do Código que define os vários tipos de crime: homicídio, furto, violação, falsificação, dano, injúrias e por aí fora. A da Parte Geral data de 1963. A chamada Parte Geral de um Código Penal é a que define os princípios, as regras sobre tentativa e comparticipação, os prazos de prescrição, os limites gerais das penas, a possibilidade de pessoas colectivas serem criminalmente responsáveis, uma das novidades mais recentes no nosso sistema jurídico, etc.

Até à aprovação do Código na Assembleia, já em Democracia, os Projectos de Eduardo Correia sofreram mil alterações, revisões, reconfirmações. Como aliás seria natural e inevitável. Mas não deixa de ser notório que a discussão parlamentar foi estranhamente limitada e circunscrita e o consenso curiosamente quase unânime – se bem recordo, praticamente discutiu-se a questão da interrupção da gravidez e a hipótese de criminalizar o não pagamento de salários a trabalhadores. Sobre as questões de fundo, a chamada ‘filosofia penal’, designadamente, a questão crucial dos chamados fins das penas, aos costumes nada disseram. Ou melhor, disseram todos: toda a Assembleia achou que o projecto que foi discutido – recorde-se que se tratava do pedido de autorização legislativa por parte do Governo – era tecnicamente excelente e estava tudo (ou quase tudo) muito bem.

E é preciso lembrar ainda que o processo legislativo acaba, em 1982, com a aprovação na Assembleia e depois a aprovação do Decreto-lei do Governo e sua publicação no Diário da República, numa fase em que a vox populi está muito preocupada com os crimes contra o património e, talvez ironicamente, com a supostamente excessiva liberalidade da lei penal que aí vinha.

E um pormenor ‘picante’: o início do texto, num certo momento do processo legislativo, passou a citar Michel Foucault, certamente para um aggiornamento das referências intelectuais e políticas. Na versão definitiva, a qualidade dos Projectos é avalizada, na Introdução, pelos nomes de “proeminentes cultores da ciência do direito penal”, como Hans-Heinrich Jesckeck, Marc Ancel e Pierre Canat.

Hoje discute-se de novo toda uma série de questões sobre leis penais (o CP é apenas uma de entre muitas, deveria ser o ‘centro dos centros’ mas, por várias razões, isso não acontece – ou cada vez acontece menos). Tipicamente, as questões – sobre corrupção e crimes conexos; sobre crimes sexuais; sobre maus-tratos a animais, sobre violência doméstica ou violência de género – centram-se em propor ou reclamar um aumento de penas de prisão ou a criação de novas penas. É o caso da castração química para crimes de abuso sexual, proposta claramente inconstitucional do chamado ‘Chega’, que em má hora chegou à Assembleia da República, ainda que legitimamente eleito pelos portugueses que, provavelmente descontentes com os ‘políticos’ e a política e com os efeitos de políticas de austeridade nas suas vidas, se deixaram convencer pelo discurso demagógico, populista e incoerente do candidato, hoje deputado único desse partido.

Neste momento, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República já se pronunciou e ficou nas mãos do presidente da mesma Assembleia a decisão de levar ou não a plenário essa Proposta de Lei do ‘Chega’.

Em Portugal, legisla-se muito, designadamente em matéria penal, “à flor da pele”. A expressão é de Manuel da Costa Andrade, grande cultor de matérias constitucionais e penais, deputado à Assembleia da República durante longos anos (eleito nas listas do PSD) e hoje presidente do Tribunal Constitucional. E, como em muitos outros países, existe uma convicção generalizada de que é essencialmente o Direito e as suas regras que regulam o Mundo, uma curiosa ilusão dos juristas mas também do senso comum – daí a sua persistente força – e que, mais especificamente, a forma de resolver um problema é proibir e, se possível, criminalizar uma actividade, ou agravar penas se já existirem… Ou, em alternativa muito portuguesa, criar mais uma comissão, um conselho, uma alta autoridade ou uma estrutura de missão de qualquer coisa.

Por vezes, sobretudo em certos assuntos, diz-se: a lei existe mas não é aplicada. Ou não é aplicada com suficiente severidade e eficácia.

Numa variante também corrente: é preciso “mudar as mentalidades”. Uma curiosa ideia, como se as alterações legais não ajudassem a mudar mentalidades e vice-versa. Os exemplos mais óbvios serão talvez as alterações profundas em matéria de leis da Família (1976, Constituição da República Portuguesa, em Democracia; 1977, Revisão do Código Civil) e as sucessivas alterações igualmente profundas em matéria da agora chamada ‘violência doméstica’.

Vamos ao Código Penal: Qual é o real efeito de agravação das penas para certos crimes? Resposta: Ninguém sabe.

Qual a potencialidade da criação de novas penas para certos crimes? Resposta: Ninguém sabe.
Qual é a razão pela qual existe a convicção generalizada de que as leis, e em especial as de natureza proibitiva (a penal, por antonomásia), resolvem os problemas sociais, económicos, políticos?

Resposta: Sabemos alguma coisa, sobretudo da Ciência Política, da Sociologia, da Criminologia – nas suas versões mais críticas e complexas, as únicas que realmente adiantam algumas coisas no nosso entendimento dos fenómenos criminais e seu controlo, mas ainda muito pouco. Porquê?

IN "PÚBLICO"
27/02/20

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