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* Economista e Professor no ISCTE
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
25/02/20
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Os mercenários do ódio
e um projecto de país
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa
humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade
livre, justa e solidária." Este é o artigo primeiro da Constituição da
República Portuguesa. Não é apenas uma frase num texto legal. É um
projecto de país.
Há duas posturas possíveis face àquela ideia
para Portugal: a dos que não desistem dela, por muito difícil que seja; e
a daqueles para quem a ideia nada diz.
Não é fácil construir um
país justo e solidário. Um dos motivos é o peso da história. A sociedade
portuguesa é das mais desiguais do mundo desenvolvido e essa
desigualdade não é de agora. Não é sequer do tempo do fascismo, embora
as opções do regime salazarista - desde a protecção repressiva dos
grandes interesses, até à falta de investimento em educação e saúde -
muito tenham contribuído para a perpetuar.
O lastro histórico
dificulta a construção de uma sociedade justa e solidária. Não há
justiça com desigualdades gritantes. Há limites à solidariedade quando
se sabe que uns poucos valem mais do que os outros.
Isto não
significa que a Constituição seja um projecto que não passou do papel.
Só por ignorância ou má fé se pode afirmar que o regime democrático fez
pouco para construir uma sociedade menos desigual. Há poucos países do
mundo onde se tenha avançado tanto em tão pouco tempo na saúde, na
educação e na redução da pobreza. Devemos isto a um investimento
empenhado em serviços públicos universais, à redistribuição de
rendimentos e à criação de direitos do trabalho, com impactos de longo
prazo difíceis de questionar.
No entanto, as desigualdades
persistem. Em parte, porque elas são próprias do sistema capitalista em
que os portugueses, bem ou mal, decidiram viver. Em parte, porque leva
muitas décadas a apagar o lastro de séculos de injustiça. Em parte,
porque nem sempre os serviços públicos conseguiram responder da melhor
forma. Em parte, porque a crise financeira e a estratégia adoptada para
lhe responder debilitaram as capacidades do Estado. As desigualdades
persistem também por falta de vontade, capacidade ou oportunidade para
pôr em causa o poder de alguns.
A persistência das desigualdades
pode e deve ser motivo para insatisfação e protesto dos cidadãos. A
começar por aqueles que se revêm na Constituição da República. Até
porque as injustiças e as desigualdades servem de alimento aos
mercenários do ódio.
Os mercenários do ódio procuram o poder
incentivando as pessoas a revoltarem-se contra um qualquer inimigo
comum. Os fiéis contra os hereges. Os mais claros contra os mais
escuros. Os de cá contra os de fora. Os do norte contra os do sul. Os do
interior contra os do litoral. Os das ilhas contra os do continente. Os
mais novos contra os mais velhos. Os funcionários públicos contra os do
privado. A lista não acaba.
Os mercenários do ódio não querem
saber da Constituição. Não querem saber de justiça, muito menos de
solidariedade. Não querem sequer saber daquilo que defendem hoje - se
der jeito, amanhã defenderão outra coisa. O que importa mesmo é o seu
próprio poder - ou o daqueles a quem obedecem. Explorar os sentimentos
de injustiça virando uns contra os outros é apenas o meio para o
conseguir. A receita é antiga.
A resposta aos mercenários do ódio
não é o ódio aos mercenários. É a afirmação da vontade de viver numa
República baseada na dignidade da pessoa humana. Numa sociedade que não
deixa ninguém para trás. A vontade de construir uma sociedade livre,
justa e solidária. Esta vontade, que é popular e soberana, é o maior
valor de Portugal.
* Economista e Professor no ISCTE
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
25/02/20
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