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Sofrimento medicamente assistido:
a eutanásia em perspetiva
A eutanásia não é para velhos, não é para quem não quer, não é para quem não consegue decidir. A eutanásia será apenas um remédio para o desespero dos que decidiram que não querem aguentar a espera.
Em alternativa à morte medicamente assistida, contrapõe-se o
sofrimento medicamente assistido. Entre uma coisa e outra, faça-se um
referendo. Sobre um tema que não é referendável, a vida. Benvindos ao
debate sobre a eutanásia, que mistura ética com constitucionalidade,
religião com política e ciência com dogmatismo. Uma coisa seria juntar
estes conceitos, outra é misturá-los, produzindo argumentações tão
inflamatórias quanto anestesiantes para a consciência.
O tema é demasiado importante para que se usem metáforas e se façam
comparações. Nada se compara ao milagre da vida, nada é mais valioso do
que uma vida humana. E este debate é sobre a vida e sobre pessoas. Sobre
a importância da dignidade da pessoa, um direito fundamental.
Em
matéria de ética, a questão coloca-se sobretudo à classe médica: quem
jura defender a vida não jura também eliminar o sofrimento? Deve
prolongar-se o sofrimento para assegurar a vida? Mas, por outro lado,
será a ciência médica tão exata que permita dar-nos certezas
relativamente à impossibilidade de recuperação de alguém a quem se
diagnosticou o fim à vista? Pode a classe médica ficar à margem deste
debate, quando é ela que diagnostica? Que decide da doença e da cura?
Que decreta a morte ou que se prolongue a vida, seja em que estado for?
Quanto à Constituição, é verdade que defende o direito à vida e é
verdade que defende a sua inviolabilidade. Mas também assegura o direito
à integridade moral (artigo 25º), garante o direito à dignidade
pessoal (artigo 26º) e à liberdade (artigo 27º). Perante estes artigos
constitucionais, poderá algum constitucionalista impor-nos o dever de
sofrer, privando-nos do direito de escolher sobre o grau de sofrimento
que estamos disponíveis para aguentar?
Pretende a religião que toda a sociedade adote a sua visão sobre o
tema. Mas não estamos nós num Estado laico? Pode, em Portugal, uma
religião, na qual ninguém votou, impor-nos um compasso que abranja toda a
sociedade e não apenas os seus crentes? Será a fé conforto suficiente
para dar a alguém que sofre o alívio desejado, retirando-lhe a dor e a
falta de dignidade da degradação física? Há quem creia que sim. E por
isso, se sinta capaz. Mas também há quem não suporte, nem queira sequer
pensar em suportar.
E a política? Pode a política dar a cada
pessoa o direito de decidir sobre si própria? Afinal, para que serve a
política se, em democracia, não puder dar a cada pessoa o direito de
decidir sobre si numa situação irreversível de extremo sofrimento? Em
Portugal, o regime é de representatividade e o voto é um direito. E um
dever. Quem opta por não votar, assume que se sente representado pelo
Parlamento que resultar das eleições. Os que votam decidem e conhecem as
regras, sabendo o que, e em que condições, pode o Parlamento decidir.
Neste caso, é por maioria simples.
E a ciência? E o dogmatismo? É a
dinâmica do conhecimento por oposição à imutação da certeza absoluta.
Acontece que as certezas mudam porque o Mundo muda. Gira, pula e avança.
E a Humanidade também. Mas hoje, agora, uma coisa é certa: a eutanásia
não é para velhos, não é para quem não quer, não é para quem não
consegue decidir. A eutanásia será apenas um remédio para o desespero
dos que decidiram que não querem aguentar a espera, nem o caminho. Não
importa a idade, nem a doença. Importa só o sofrimento para conseguir
morrer. E para isso, não há conforto, a palavra que tantos colocam
delicadamente no outro prato da balança…
IN "OBSERVADOR"
15/02/20
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