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IN "OBSERVADOR"
27/12/19
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A epistemologia do eu
Amadurecer é encontrar um equilíbrio entre os desejos pessoais (a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras sociais. Mas hoje parecemos presos a uma sociedade de eterna adolescência
«What you are suggesting is unthinkable. The order of succession to the throne is determined by the Act of Settlement of 1701, not the wild and irresponsible whims of young princesses. The principle of undisturbed hereditary descent is a pillar of stability and perpetuity for the nation. (…) I would urge you to accept your position in life and to dismiss forthwith any childish notions about rewriting the rule books that it might better suit your character. We all have a role to play.»
The Crown, s03 e02
Uma das tentações mais perigosas da reflexão política é a da
simplificação. O seu poder hipnótico passa por, apresentando causas e
efeitos lineares, criar a ilusão de controlo, a ilusão de que podemos
não só compreender, mas também condicionar tudo o que vai acontecendo à
nossa volta. É este, por exemplo, o poder das ideologias. Enquanto
narrativas simplificadas de termos e relações causais, elas parecem
tornar o mundo mais inteligível. Trata-se, contudo, de uma fantasia, e a
compreensão de um mundo cada vez mais complexo implica o esforço de,
periodicamente, darmos um passo atrás e ganharmos distanciamento sobre
os acontecimentos. Uma boa estratégia passa por revisitar os autores que
ainda hoje influenciam o nosso modo de pensar e entender como os seus
legados, muitas vezes contraditórios, se mantêm como discursos
hegemónicos ou de resistência, ou como aparentes derrotados que vingam
muito tempo depois.
Esta perspetiva permite, nomeadamente, iluminar os legados de John
Locke e Jean-Jacques Rousseau. A vitória da democracia liberal
significou a vitória de Locke e de um vocabulário centrado em direitos
naturais, limitação do poder político, consentimento, representação,
direito de resistência. E tal significou a derrota do modelo
rousseauniano de participação, comunitarismo e poder político não
limitado. Mas a segunda metade do século XX viu regressar o espírito de
Rousseau, radicalizando o individualismo que caracteriza a modernidade e
dando forma a fenómenos políticos radicados naquilo que podemos
designar como a epistemologia do eu.
A epistemologia do
eu resulta do legado de Rousseau que assenta no espírito de rebeldia de
um eu interior que vive em permanente confronto com a sociedade
exterior. Para o genebrino, o estado de absoluta liberdade e igualdade
do ser humano – em linguagem contratualista, o estado de natureza – é o
estado em que, vivendo sozinhos, somos autores das próprias leis e não
dependemos dos outros. É quando passamos a viver em sociedade que
perdemos, progressivamente, liberdade e igualdade naturais: não só
deixamos de determinar as regras, como a vivência com o outro nos
corrompe, destruindo a natureza do bom selvagem.
Há, nesse
sentido, em Rousseau uma luta constante com a sociedade e com os outros –
e a sua biografia pessoal, retratada nas deliciosas Confissões,
revela precisamente esta luta, num confronto permanente com a sociedade
que o rodeia, com amigos de sempre que deixam de o ser, com um mundo
que conspira constantemente contra ele. Mas o sentimento de atração que a
sua leitura provoca é proporcional à sensação de desconforto que
resulta do facto de Rousseau parecer um eterno adolescente, procurando a
sua identidade na oposição constante aos outros. Permanecendo neste
estado, nunca cresce, nunca amadurece, nunca aprende a viver num mundo
que o antecede e que permanecerá após a sua morte.
É por esta razão que Rousseau é tão sedutor para aqueles que sentem
desconforto com o mundo que os rodeia. E é este espírito rousseauniano
que marca muito da política atual: a vontade de mudar o mundo de acordo
com desejos pessoais, recuperando uma liberdade inicial à custa de impor
aos outros uma vontade individual. A legitimidade dessa imposição
residiria na experiência pessoal e individual que é superior à
experiência coletiva – a epistemologia do eu prevaleceria sobre a
epistemologia do nós.
Este modo de ver o mundo e a política
apresenta, contudo, um sério problema: é que, ao centrar-se na ideia de
que existe um eu interior que é puro e que se opõe a uma sociedade que
deve ser alterada para servir as necessidades desse eu, leva-nos a
desvalorizar as instituições, as regras, os consensos que nos antecedem.
Se o mundo não respeita os nossos desejos interiores, então pior para o
mundo, que se crie um mundo novo. Mas há algo de profundamente perverso
na ideia de que as nossas vontades são moralmente superiores ou
politicamente mais válidas do que instituições que sobreviveram durante
séculos e que cumpriram, em sentido burkiano, a sua função. Há algo de
perverso e infantil – mas também perigoso, porque nos impede de dar um
sentido coletivo às decisões políticas, curiosamente em contradição com
as próprias ideias de Rousseau. A vertigem do eu impede a prossecução de consensos em torno do nós.
Talvez
faça sentido, por essa razão, recordar uma antiga lição: amadurecer
significa encontrar um equilíbrio entre os nossos desejos pessoais (que
marcam a condição de infância, em que queremos tudo e já) e as regras
sociais. Mas hoje parecemos condenados a uma sociedade de eterna
adolescência, centrada em dinâmicas de vitimização que procuram mudar o
mundo e as suas regras para que se adaptem ao eu de cada um. Mas
lembremo-nos de que Rousseau morreu sozinho, revoltado com o mundo e
enlouquecido pela ideia de que todos lhe queriam mal – uma experiência
que, pessoal e coletivamente, talvez não queiramos repetir.
* Professora da Universidade da Beira Interior
IN "OBSERVADOR"
27/12/19
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