02/01/2020

MANUEL SÉRGIO

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Jorge Jesus na
 “sociedade aprendente”

A Comunicação Social não cessa de nos repetir uma afirmação convicta de José Saramago: “o homem mais sábio, que eu conheci, em toda a minha vida, não sabia ler nem escrever”. Cervantes escreveu o Dom Quixote, onde surge a figura do Sancho, que faz desta obra imorredoira uma alegoria magistral do permanente conflito entre a teoria e a prática. Eu, um permanente estudante de filosofia (e peregrinando também, com devoção, nos melhores literatos portugueses) já escrevi, em 1977, no meu livrinho A Prática e a Educação Física (Compendium, Lisboa): “De facto, a unidade prática-teoria constitui uma totalidade em que à prática assiste papel fundamental, pois é nela que se reconciliam e interfecundam o objectivo e o subjectivo”. Nas minhas aulas, sugeria aos alunos que “a prática é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática”. E chegava mesmo a dizer-lhes: “Quem só teoriza não sabe, mas quem só pratica repete”. Propunha eu, assim, aos alunos a indissolúvel ligação prática-teoria, dando à prática especial relevância, pois que a prática, mal ou bem, transforma e a teoria, por si só, pode não passar de uma acumulação pomposa de palavras, sem quaisquer efeitos práticos. O que era (é) o conselheiro Acácio senão um palavroso, adulado, reverenciado pelo que dizia, mas simultaneamente de uma flagrante inoperância? Todo o teórico, sem ligação à prática, que julga que tem a Verdade e que a pode dizer, com irrefutável certeza, julga-se um Sol... mas anda na lua! A grande diferença, em Habermas, entre teoria tradicional e teoria crítica, reside no facto de a teoria crítica visar a emancipação do ser humano, mediada historicamente, ou seja, hoje, uma teoria deverá apresentar-se com um interesse prático de transformação. A teoria é necessária, indispensável, mas só como “razão prática”, no meu pensar, se torna visível.

Jorge Jesus exige, para sua justa interpretação, o concurso de inúmeros fatores, como é de uso fazer-se com uma figura pública e de grande relevo, como ele é (embora todos nós sejamos vários homens num homem só).  O que me ocorre, desde já destacar é que, na sua profissão, é um “prático”: foi jogador de futebol e é, hoje, um treinador de futebol que o mundo começou a reverenciar. Os seus conhecimentos resultam da sua prática diária, quer como antigo jogador, quer como atual treinador. E é neles que ele acredita, porque foi com eles que chegou aos cumes mais altos do futebol nacional (é o treinador mais titulado, em Portugal, com 11 títulos em quatro provas) e internacional. No livro de Gustavo Pires e António Cunha, Agôn, Homo Sportivus – Estratégias & Estratagemas (Edições Afrontamento, Porto, 2017) sustentam os autores: “quando se trata da própria equipa, o treinador deve considerar os seguintes aspectos: o desenvolvimento pessoal de cada jogador; a dinâmica de relações, no grupo; a organização e o planeamento do trabalho; a partilha das derrotas e dos êxitos; o processo de autoavaliação e controlo” E continuam Gustavo Pires e António Cunha: “Nas organizações aprendentes (típicas da sociedade pós-industrial, onde as organizações se mostram capazes de criar sistemas de auto-aprendizagem) a espiritualidade da liderança, enquanto partilha de valores, de crenças, de perspetivas de vida e de auto-conhecimento coletivo, é uma realidade que pode determinar as condições propícias à organização da vitória”. Quando lhe cabe o encargo de uma conferência de imprensa, estes são assuntos de que pouco se ocupa o Jorge Jesus. Risonho, flamante, fala dos seus méritos que são muitos, de facto. Fala dos seus méritos... porque, como já o acentuei, é na sua própria prática que ele verdadeiramente acredita! Não tem grande cultura livresca, mas tem um conhecimento tão meticuloso e tão intensamente vivido dos problemas técnicos e táticos do futebol, que imediatamente deslumbra os jogadores que, na sua esmagadora maioria, se rendem à sua teorização.

E, porque é um homem onde as “razões do coração” predominam sobre as “razões da razão”, dificilmente o seu comportamento merece uma concordância ou uma discordância generalizadas. No entanto, não é verdade que a grandeza de uma obra se mede mais pela pluralidade das reações que suscita do que pelo afinado e vulgar coro de mesuras, venenoso obséquio que mais empobrece do que enriquece um objeto de estudo? E, porque é cordialmente extrovertido, Jorge Jesus não sabe furtar-se ao risco de mostrar quem é e como é. Quem é? Um prático genial, que faz o que muitos (muitíssimos) letrados não sabem fazer: ser líder magistral de uma equipa de futebol de alta competição. Tendo chegado ao Benfica, já com mais de 50 anos de idade, fica na história deste Clube como o treinador de futebol que mais troféus conquistou: 3 Ligas, 1 Taça de Portugal, 5 Taças da Liga  e 1 Supertaça. É verdade que o seu trabalho não seria tão vivo e fecundante, se não beneficiasse do apoio do presidente Luís Filipe Vieira que já logrou, no Benfica, obra de tamanho relevo, que a obra feita ultrapassa o criador e fixa-se na perenidade deste glorioso Clube. No entanto, a exuberante competência de Jorge Jesus também deixou embevecida e encantada a esmagadora maioria dos benfiquistas. Não há que negá-lo! Chegou, há meia-dúzia de meses, ao Brasil, para treinar o Flamengo e fez o que só um génio saberia fazer: venceu o Brasileirão (a 16 pontos do segundo classificado), conquistou a Taça Libertadores e jogou, de igual para igual, com o Liverpool, no jogo final do Mundial de Clubes. É, à sua maneira, um hermeneuta do futebol, como não sei se outro haverá no mundo todo. Como é? Emotivo até à raiz dos cabelos, romântico impenitente, cavaleiro andante de uma grande paixão pelo futebol, o atual treinador do Flamengo do Rio de Janeiro é, sem possível contestação, um treinador de grande improvisação e talento, de refulgente audácia e nervo. Uma ou outra palavra mais brejeira representava nele (já não representa hoje, porque o modo como se expressa, atualmente, é de muito melhor qualidade) o primado do conteúdo sobre a forma, ou seja, o que ele quer dizer da sua vivência do futebol  parece não caber no alfabeto. O seu modo de interpretar o futebol é o que lhe interessa exprimir, salientar e cultivar. Recordo o verso de Régio: “mas eu que nunca principio nem acabo” é o que Jorge Jesus diz de si mesmo, ao falar de futebol... 

Conheci Jorge Jesus, porque de mim se aproximou (ou melhor: do Homero Serpa e de mim), era ele então o treinador do C.F.”Os Belenenses”. E ficámos amigos, até hoje, até sempre. Durante um ano, fui seu adjunto e revi com particular atenção o que já aprendera com José Maria Pedroto e José Mourinho. Jorge Jesus, um profissional sem licenciatura universitária? Mas de prática sublime, quero eu dizer: não trabalha por imitação, ou por moda. Como Hegel dizia de si mesmo: “Eu fui condenado a ser filósofo”. Ele poderá dizer: “Eu fui condenado a ser treinador de futebol”. Ou seja, ele treina, porque não pode fazer outra coisa. É um grande treinador de futebol. Entre os melhores do mundo. Indubitavelmente. Muito ou pouco letrado, não importa! Ele é! E vai ser mais porque, após as vitórias no Brasileirão e na Libertadores, encontrou novas pistas e conexões e uma nova e nunca apaziguada certeza de que, esteja onde estiver, trabalhe onde trabalhar, será sempre um adestrado fazedor de vitórias. E a teoria que norteia a prática? A teoria, para ele, implica “aparição” na fenomenalidade da sua prática. É, porque pratica, que teoriza. Aliás, entre a instrução e o conhecimento a relação não me parece tão nítida, pois que o especialista, em qualquer área do saber, não se reduz à cognição. De facto, sem emoção não há aprendizagem. Quando Assman nos fala de “sociedade aprendente”, ele estabelece uma sólida relação entre vida e aprendizagem. A educação básica, universal e obrigatória; o ensino universitário… mas, na “sociedade aprendente”, a vida ensina mais do que a escola. O desenvolvimento da escola tem de radicar, atualmente, no desenvolvimento social e político. Também, quando penso e repenso a “motricidade humana”, concluo sempre que a ação é inter-ação. O “eu” não existe, se não for alimentado por um “tu”. Por isso, o desporto é naturalmente solidário. Como o Jorge Jesus.

Evoco, agora, o conceito de “horizonte” de Gadamer, já largamente utilizado por Nietzsche e Husserl e que, na “Verdade e Método”, Gadamer retomou: “Horizonte é o círculo da visão que alcança e encerra tudo o que é visível, desde um determinado ponto”. Com uma cultura empírica, experiencial, imediatista e pragmática, há quem saiba muito de futebol. O conhecimento científico é neutro, objetivo e objetivante. É indispensável, mas não é o suficiente para compreender um ser humano. Para compreender-se uma pessoa, necessário se torna uma relação vital com ela. Caso contrário, uma ciência empírico-formal basta. Só que a pessoa é sempre um sujeito, com algumas “razões da razão” e inúmeras “razões do coração”, para além de condicionalismos de vária ordem. No ato de conhecer, não existe um acesso direto à realidade, sem passar pelo sujeito. Perceber, para Maurice Merleau-Ponty, “é tornar presente qualquer coisa, com a ajuda do corpo”. Uma simples dor de dentes pode transformar-se num tremendo “obstáculo epistemológico”. Concluindo: sou eu, e não só a minha razão, quem compreende. Por isso, só interpreta quem compreende e só compreende quem interpreta. Um exemplo: o Jorge Jesus tem uma extraordinária leitura de jogo (extraordinária, podem crer) porque ama o que faz, como treinador de futebol. E, porque ama muito, compreende melhor. Etimologicamente “com-preender” sugere “com um sujeito” a quem se está (ou se fica) preso. Jorge Jesus compreende os seus jogadores, porque os ama e com eles sabe comunicar. Não há nele tão-só uma “racionalidade comunicativa”, mas uma entrega total, onde há matéria, vida, emoção (muita emoção) e espírito. Ele comunica com palavras, com os gestos, com o corpo todo e a alma inteira. Jorge Jesus, servindo-me das palavras de Cristo, “faz novas todas as coisas”. E porquê? Porque trouxe ao futebol um novo modo de ”estar”. Este é o segredo das vitórias de Jorge Jesus. Aliás, há muito eu venho dizendo: é o homem (ou mulher) que se é que triunfa no treinador que se pode ser. Reside aqui, se bem penso, o segredo das vitórias de Jorge Jesus.            

* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto 

IN "A BOLA"
31/12/19

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