05/01/2020

MAFALDA ANJOS

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Mais do que boa vontade
 na Saúde

É hora de meter dinheiro, estratégia e boa gestão onde sempre existiu boa vontade

Há uma curiosa tradição de o primeiro-ministro e de o Presidente da República falarem de assuntos sérios ao País enquanto a nação avia presentes, rabanadas e sonhos. Este ano, António Costa escolheu o setor da Saúde para a mensagem de Natal, mais ou menos como quem escolhe sentar do lado direito, na mesa da consoada, o filho com quem pouco se falou o ano inteiro. O primeiro-ministro sabe que os portugueses estão descontentes com o estado do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que este é um dos maiores busílis da sua governação e que tem responsabilidade perante o estado a que as coisas chegaram.

Vamos falar claramente – face à indiscutível necessidade de reequilíbrio financeiro e contenção orçamental, a Saúde, tal como outros serviços públicos, não foi prioridade do governo de António Costa e Mário Centeno. Tratava-se de fazer opções, e as do governo foram outras. Costa dirá que a despesa pública com a Saúde aumentou durante o seu tempo, o que é um facto, mas os números bem esmiuçados mostram uma realidade distinta. Face à riqueza que o País produziu, existiram menos recursos na Saúde – esse aumento da despesa que é amplamente propalado para calar os descontentes foi apenas em termos nominais. Quando se olha para este valor em percentagem do PIB, esteve sempre a cair: em 2017, por exemplo, nos 6% estávamos abaixo do que se gastava em Saúde em 2012, no auge da crise (6,5%). E, se somarmos o SNS e privados, estamos em valores mínimos desde 2003. Os dados da execução orçamental mostram a mesma realidade, da qual tanto as equipas médicas como os portugueses se queixam: um desinvestimento.

Como político experimentado que é, em vez de continuar a fingir que nada se passa, António Costa decidiu finalmente trazer o tema à ordem do dia e fazer dele um assunto prioritário para o PS. Uma espécie de nova “paixão”. Logo após as eleições, Ana Catarina Mendes já tinha assumido, numa entrevista à VISÃO, que os hospitais públicos têm falhas e que a Saúde teria de ser uma prioridade nos próximos quatros anos. Estava aberto o caminho de uma mudança de prioridades para agradar tanto à direita como à esquerda (sobretudo ao Bloco, que apresentou exigências concretas), agora estrategicamente reforçada em antecipação da discussão na generalidade do Orçamento do Estado.

Como sublinhou o primeiro-ministro, o documento apresentado na Assembleia contempla “o maior reforço de sempre no orçamento inicial da Saúde e confere maior autonomia aos hospitais para garantir uma maior eficiência e responsabilidade na gestão do seu dia a dia”. Com efeito, o Governo aprovou um aumento de 800 milhões de euros para aumentar a capacidade de resposta do SNS, mas também abriu as portas à contratação de mais 8 400 profissionais de saúde em 2020 e 2021. Foi ainda aprovado um reforço orçamental de 550 milhões de euros para reduzir as dívidas em atraso. Em boa hora o fez. Ainda no início de 2019, o Tribunal de Contas veio dizer que a situação económico-financeira do SNS era “extraordinariamente débil” e que a dívida do SNS a fornecedores e a outros credores aumentou 51% entre 2014 e 2017.

Na sua mensagem, o primeiro-ministro mencionou apenas de passagem o que para mim é, na verdade, o essencial: o “reconhecimento a todos os profissionais que diariamente dão o seu melhor para nos assegurar um serviço de saúde”. Foram eles – médicos, enfermeiros, auxiliares e outras equipas médicas –, com o seu empenho e dedicação, que durante este tempo seguraram muitas das pontas soltas. Que taparam alguns dos buracos com remendos de carolice, abnegação e amor ao próximo. Que zelaram, apesar das dificuldades evidentes e da suborçamentação, para que os portugueses não sentissem tanto na pele e no seu bem-estar as consequências de uma opção política.

E que ajudaram a que se chegasse ao 40º aniversário do SNS com a dignidade que esta enorme conquista portuguesa de humanidade e de justiça social merece. Bem hajam, sinceramente, por isso. É hora de meter dinheiro, e já agora reformas, estratégia e boa gestão, onde sempre existiu boa vontade.

* DIRECTORA

IN "VISÃO"
02/01/20

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