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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/01/20
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A igreja que pede perdão
mas nunca tem culpa
Há quem veja na carta do ex papa que não quer deixar de ser papa "um embaraço" para ele, a igreja a que pertence e o papa em funções. É com certeza. Mas é também uma boa radiografia da instituição e da sua ridícula obsessão pelo sexo, da sua raiva à liberdade e da sua impiedosa e brutal indiferença por tudo o que não seja ela própria.
"Começou com a prescrição pelo Estado da necessidade de introduzir as crianças e jovens à natureza da sexualidade. (...) Filmes sexuais e pornográficos tornaram-se comuns, chegando-se ao ponto de passarem nos cinemas. (...) Lembro-me de chegar à cidade de Regensburg na sexta-feira santa e haver um enorme poster de um casal completamente nu abraçado. (...) O colapso moral esteve também ligado a uma propensão para a violência. É por esse motivo que filmes sexuais deixaram de ser mostrados em aviões: porque desencadeariam violência entre os passageiros. E como o tipo de roupa usado nesse tempo também era propenso a provocar agressão, os diretores das escolas tentaram impor uniformes de forma a propiciar um ambiente adequado à aprendizagem."
Sim, isto é o início da carta publicada esta semana por aquele a quem já chamaram o papa "morto-vivo"
(por ter resignado mas se manter no Vaticano como papa emérito, com
nome papal, vestes papais e, como se constata, a determinação de
continuar a interferir no governo da igreja a que pertence).
Aparentemente, para este homem nascido em 1927 -- que
esteve na juventude hitleriana e assistiu ao nazismo, durante o qual,
dizem-nos, um seu primo de 14 anos com síndroma de Down foi em 1941
retirado à família para ser, como tantos outros deficientes, e também
homossexuais, judeus e resistentes, "eliminado" --, terrível
como colapso moral e como "ambiente propenso à violência" foi a
revolução sexual dos anos 1960. No âmbito da qual, ficamos a saber, não
só passavam filmes porno nos aviões como, garante-nos Bento XVI, "a
pedofilia foi diagnosticada como permitida e apropriada."
Esta última revelação, que a todos terá passado despercebida, talvez
possa explicar por que motivo assistimos a uma tão notória relutância da
hierarquia da IC, ao longo das décadas e ainda hoje, em denunciar
padres acusados de abusar de crianças (pelo contrário, criou, como se
sabe, um verdadeiro livro de estilo de encobrimento, descredibilizando
os seus denunciantes, mudando os denunciados de paróquia em paróquia e
evitando sempre, claro está, "o escândalo público"): estará a
instituição, como o papa emérito, convencida de que nos anos 1960 o
abuso foi declarado como "apropriado". Ou é isso ou o facto de durante
séculos a Igreja Católica ter casado crianças com adultos e portanto,
dentro da lógica daquilo a que chama "a lei natural", não ver onde está o
abuso.
Mas não desçamos à mesquinhez de trazer a verdade
histórica à colação quando Bento nos fala da verdade com maiúscula - a
qual, como se sabe, não se detém em minudências do tipo "isso nunca
aconteceu" ou "mas que magistral aldrabice para aí vai."
É porque
se ocupa da verdade com maiúscula que Bento, ao pretender que a crise do
abuso sexual na IC se deve ao que chama "a dissolução do conceito de
moralidade cristã", marcada, afiança, por "um radicalismo sem
precedentes nos anos 1960", quando, jura, foram criadas "cliques de
homossexuais" nos seminários, ignora resolutamente tudo o que se sabe
sobre abusos sexuais ocorridos no seio da IC muito antes dessa década - e
o facto, já agora, de muitas das vítimas serem também do sexo feminino.
Ignora também resolutamente aquilo que especialistas já apontaram
em reação à carta: que as alterações devidas ao Vaticano II só
começaram a ter efeito nos seminários a partir da década de 1970. Aliás,
ignora resolutamente a sua própria lógica: logo após falar das "cliques
homossexuais" menciona o facto de haver seminários - dá o exemplo de um
no sul da Alemanha -- onde candidatos a padres e leigos viviam e comiam
juntos, e por vezes "os leigos casados recebiam as suas mulheres,
filhos e até namoradas." Conclui Bento: "O ambiente neste seminário não
providenciava apoio para a preparação para o sacerdócio."
Conclusão:
a culpa é dos homossexuais mas também dos heterossexuais. Qualquer
sexual, em suma, ameaça a vocação dos candidatos a padres. A vida, as
pessoas, quiçá as correntes de ar e a luz do sol. Como daí, da vocação
ameaçada, se passa para o abuso sexual (não seria muito mais evidente
passar-se para não ser padre?) é que falta explicar. Mas calma: tudo
será revelado. Até porque, diz-nos Bento, "a questão da pedofilia, tal como me recordo, não se agudizou a não ser na segunda metade dos anos 1980".
Supõe-se
que o papa emérito achará também que a violência doméstica só se
agudizou quando se começou a falar dela e mais ainda quando foi
criminalizada: antes as mulheres e crianças não levavam tareias; zero. E
por exemplo em Portugal, como o crime de abuso sexual de crianças só
existe no Código Penal desde os anos 1990, e só desde aí podemos
contabilizar queixas, temos de concluir que antes ninguém abusava de
crianças. Como não havia homens violados, porque a lei definia a
violação como um crime de vítima exclusivamente feminina.
Mas há
ainda melhor na carta de Bento. Prefeito da Congregação da Doutrina da
Fé de 1981 a 2005, quando foi ordenado papa, queixa-se na carta do
garantismo processual da lei canónica: "Os direitos dos acusados tinham
de ser garantidos acima de tudo, a um ponto tal que se excluía qualquer
condenação de facto." Como prefeito e como cardeal Ratzinger, o autor da
carta superintendia os processos e as investigações de abuso sexual;
depois, durante oito anos, foi chefe máximo da igreja. Mudou a lei
canónica que o seu antecessor João Paulo II (de quem foi declaradamente o
teórico) reviu em 1983? Não. Nem lhe ocorreu fazer por exemplo o apelo
que Francisco já lançou, o de que os casos sejam denunciados às
autoridades civis.
Bento foi durante mais de 30 anos, no surgir e no
desenvolvimento da crise, responsável pela sua gestão. Mas não
encontramos nesta missiva um reconhecimento do óbvio falhanço, um pedido
de desculpas - não só pelo que não fez como pelo facto de ter
abandonado o posto e passado a responsabilidade a Francisco. Para agora,
da plateia, se dedicar a minar-lhe a autoridade.
Não
vemos de resto nesta longa carta mais menção às vítimas do que quando
fala de uma mulher abusada em criança a quem o padre antes dos atos
dizia "toma o meu corpo". E mesmo isso não é mencionado para sublinhar o
sofrimento da vítima; fá-lo para se afligir com a falta de fé e com a
rutura com a igreja que tais atos do padre lhe podem ter causado. É
essa, claramente, a única preocupação de Bento: o poder e a
sobrevivência da igreja, e os seus próprios - contra o mundo, contra os
factos, contra a verdade. Tudo pela igreja, nada contra ela.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/01/20
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