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* Economista e professor no ISEG
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
30/12/19
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Paul Volcker
e a instabilidade financeira
Ninguém mais do que Volcker contribuiu para o persistente disfuncionamento do sistema financeiro. A integridade e a independência não bastam quando são postas ao serviço de políticas económicas erradas.
Mehrling : Então você não leu na época os clássicos textos bancários, por exemplo, a Lombard Street de Bagehot?
Volcker : Bem, eu li alguns de Bagehot e muitos de Hawtrey. Lembro que li muito Hawtrey.
Federal
Reserve Board Oral History Project , Interview with Paul A. Volcker
Former Chairman, Board of Governors of the Federal Reserve System, 2010.
Os
obituários de Paul Volcker, falecido no passado 8 de Dezembro, foram
na esmagadora maioria muito elogiosos, destacando, sobretudo, três
aspectos da sua vida e acção: a luta vitoriosa contra a inflação
galopante dos anos 1970 e 1980, enquanto presidente do banco central
americano no período 1979-1987, a sua integridade pessoal e a
independência face ao poder político. Estes elogios são fundamentados e
justos e não podem ser obscurecidos pelas críticas tendenciosas e
injustificadas que também surgiram acusando, por um lado, a sua fiel
ligação à família Rockefeller e , por outro, a sua suposta
responsabilidade pela quebra, desde os anos 1980, do rácio dos salários
no PIB.
Porém, há um ponto fundamental da acção de
Volcker, raramente referido, que sobressai em importância de todos os
outros: o seu papel no desmantelamento do sistema de Bretton Woods e no
consequente golpe de misericórdia no padrão-ouro, origem da
instabilidade financeira que se inicia nos anos 1970 e vem até hoje.
A
inflação de dois dígitos desencadeada nos anos 1970 - cujo combate
vitorioso é creditado a Volcker - não é alheia a este. Volcker foi o
mentor da política de Nixon - enquanto subsecretário do Tesouro - que
suspendeu em 1971 a convertibilidade do dólar em ouro, congelou os
preços e os salários e impôs entraves adicionais às importações. A raiz
da inflação que, efectivamente ajudou a controlar, está,
fundamentalmente, no corte do último elo entre o dólar e o ouro que
Volcker patrocinou mais do que qualquer um.
Na verdade, a
escolha que foi feita entre as opções que estavam em cima da mesa nos
dois anos que antecederam o fatídico 15 de Agosto de 1971 teve a
influência decisiva de Volcker. Perante a massiva emissão de dólares,
devido às despesas com os programas sociais e à disparatada guerra do
Vietname, tratava-se então de optar entre: a) a passagem para o
padrão-ouro integral, a liberdade de circulação de bens, serviços e
capitais e de formação interna dos preços, ou b) o fim do último elo
entre o ouro e o dólar e a imposição de controlos na formação dos preços
e nos movimentos de capitais, de bens e serviços.
Volcker,
embora admirasse a estabilidade dada pelo ouro, punha acima de tudo o
seu entendimento subjectivo sobre o poder económico dos EUA e os
"especuladores" em ouro (sobretudo União Soviética, África do Sul e
França).
A luta que Volcker, entre 1969 e 1971, travou e
venceu contra Arthur Burns, então presidente do FED e conselheiro de
Nixon merece ser conhecida (Burns queria preservar o papel do ouro e
defendia, como a maioria dos países ocidentais, o aumento do preço do
ouro e a desvalorização do dólar). A versão de Volcker está bem
documentada nas suas memórias, escritas um ano antes da sua morte1.
A
sua história não é única. Como outros, contribuiu decisivamente para
conter a tempestade que desencadeou. Mas iniciou uma espiral de
regulação e controlo de efeitos perversos e persistentes. A sua
consciência deve ter-lhe pesado até ao fim, a avaliar pelas suas últimas
intervenções públicas onde aparecia, um pouco quixotescamente, a
defender um "novo bretton woods".
Ninguém mais do que Volcker contribuiu para o persistente disfuncionamento do sistema financeiro.
A integridade e a independência não bastam quando são postas ao serviço de políticas económicas erradas.
* Economista e professor no ISEG
30/12/19
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