.
IN "SOL"
09 /11 /19
.
Da proa à popa dos moliceiros
Exploram a ria os mercantéis, que fazem o tráfego da sardinha, os
barqueiros que fazem os fretes marítimos, os rendeiros das praias que
lhe aproveitam os juncais, os marnotos, que se empregam no fabrico do
sal, os moliceiros, que apanham as algas, e finalmente os pescadores da
Murtosa, que são os únicos a quem se pode aplicar este nome, e que entre
outras redes usam a solheira, a rede de salto, a murgeira e a
branqueira. Assim contava Raul Brandão, n’ Os Pescadores.
Já não é bem assim, mas pescadores ainda os há na Murtosa da escrita
de Brandão, com suas bateiras de um homem só, ou de dois ou de três, ou
chichorros, que levam bem mais, até aos oito ou nove, quase em número
das companhas que se fazem ao mar e sobrevivem na arte da xávega em que
os bois deram lugar aos tratores, até à rede e o pescado se darem à
vista na rebentação, passando aí para a recolha pela força braçal de
pescadores, varinas e crianças e quem mais houver no areal.
Mercantéis e, sobretudo, moliceiros também voltaram a haver, em número agora cada vez maior, na ria de Aveiro.
Nos canais da capital da beira litoral, desmastrados para deambularem
por baixo das pontes aveirenses, mas também pelos braços da ria que vão
até Ovar, pelo Bico da Murtosa, pela Cambeia, por Pardelhas, pelo
Bunheiro. Estes são à moda antiga, com mastro e vela, mas agora
acrescidos de motor, que os turistas não têm tempo para andar ao sabor
do vento nem deixam espaço para se passar do castelo no topo da proa,
pela amurada, até quase à popa, para dar à vara e fazer o moliceiro
planar na água.
À conta do turismo e de Aveiro ter ganho fama de Veneza de Portugal,
mestre António Esteves já voltou a não dar vazão às encomendas no seu
estaleiro lá do sítio de Pardilhó, onde nasceu o poeta José Bento, que
partiu faz semanas, e que Assis Pacheco também adotou.
E não faltam os ‘bota-abaixo’ no deslumbrante cais do Bico, que é
como quem diz os ‘batismos’ dos moliceiros entregues às águas da ria,
dando-lhes novo colorido com as proas e popas pintadas, com a arte e a
criatividade brejeira do mestre murtoseiro José Oliveira e de outros
seguidores ainda com nome por fazer.
Um dos últimos foi ‘O Presidente’ – numa homenagem ao atual inquilino
de Belém e aos seus afetos – e lá está o Presidente num dos desenhos da
proa, com um mapa de Portugal com as suas antigas províncias pintadas
às cores e Marcelo a beijá-lo na zona em que a ria tem o seu máximo
esplendor: na Murtosa.
E se vale a pena perder tempo, e ganhar alma, a contemplar aquela ria por onde navegam esses moliceiros. Que ria!
IN "SOL"
09 /11 /19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário