24/11/2019

MARIA JOSÉ DA SILVEIRA NÚNCIO

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Vítimas ou danos colaterais? 
Quem são os filhos do fim do amor?

É claro que todos têm o direito de se separar. Essa é, afinal, uma forma (outra forma) de crer na felicidade e de lutar por ela. Só que esse é o direito dos adultos. Mas e o direito das crianças e dos jovens? Esse tão apregoado interesse superior, onde fica, nestas situações?

Os conflitos familiares que ocorrem no espaço reservado do doméstico continuam a não ser, com frequência, devidamente valorizados pela justiça, por um lado, e pelos serviços de protecção de crianças e jovens, por outro.

E não me refiro, sequer, à conflitualidade violenta (e pergunto-me se isto não é uma contradição nos termos, pois toda a conflitualidade é violenta, variando talvez, e apenas, em grau), ou seja, não me refiro à violência extrema, que é trazida à luz do dia pelos piores motivos: aquela violência em que há mortes que se registam numa contabilidade macabra e sangrenta, que é (ou deveria ser), também, a contabilidade da nossa vergonhosa ineficácia.

A questão, a verdadeira e profunda questão, é que estas são mortes anunciadas.

Anunciadas, mesmo quando não chegam a ser mortes, mas são, ainda assim, outras formas de morte. E são-no, especialmente, para os filhos, para as crianças e jovens que, quotidianamente, vivem nesses ambientes de conflitualidade lenta e quezilenta, coberta da amargura dos sonhos desfeitos.

E desfazem-se tantos sonhos: os sonhos de um amor que haveria de durar para sempre (e não durou); os sonhos de uma vida que se faria juntos (e não fez); os sonhos da casa e da mobília e dos electrodomésticos; os sonhos de um berço (ou de vários berços).

E dentro do berço (de tantos berços), outros sonhos: o sonho da segurança, o sonho da tranquilidade, da protecção e da paz.

E a crónica anunciada da morte do amor vai sendo escrita e vai apagando os sonhos. Escreve-se num crescendo de distância ou de desencanto, de ciúme ou de desespero, de gritos ou de silêncios, de acusações e de queixas, a caminho do fim.

Um fim que é o do amor dos adultos, sim, mas em que as crianças e os jovens são (costumam sê-lo, na maioria dos casos) quem paga a mais elevada factura: frágeis, desprotegidos, usados e manipulados, qual troféus, nessa verdadeira guerra sem quartel em que se convertem tantas separações.

Uma guerra em que os filhos, as verdadeiras vítimas, parecem ser percebidos, apenas, como uma espécie de danos colaterais inevitáveis.

E é claro que todos têm o direito de se separar. Essa é, afinal, uma forma (outra forma) de crer na felicidade e de lutar por ela. Só que esse é o direito dos adultos e, repito-o, ainda bem que assim é.

Mas e o direito das crianças e dos jovens? Esse tão apregoado interesse superior, onde fica, nestas situações, em que o direito das crianças é facilmente confundido com um direito dos pais?

E, sobretudo, como se compaginam estes direitos quando se sabe que esta conflitualidade tem efeitos que se prolongam no tempo e se tatuam na alma em desconfiança, em medo e em inseguranças várias?

E este é um verdadeiro problema social, dado que é o sofrimento de uma geração cada vez mais numerosa.

Um sofrimento calado e, tantas e tantas vezes, negado pelos adultos (porque admiti-lo é doloroso, ou melhor, é ainda mais doloroso e é, também, um sinal de insucesso, ou melhor, mais um sinal de insucesso).

Um sofrimento com o qual as famílias se vêem obrigadas a lidar sozinhas, o melhor que sabem ou podem, ou que não sabem nem podem…

Um sofrimento que é prolongado por uma justiça de família que é lenta e que é, sobretudo, muitas vezes injusta e muito mais promotora do conflito e da sua escalada, do que da pacificação e do diálogo. E, nesse sentido, uma justiça que contribui, ela própria, para a escrita dessa crónica das mortes anunciadas.

Um sofrimento que é envergonhado e se mascara com presentes caros e totalmente supérfluos, que servem, apenas, para competir com o outro progenitor, ou para compensar os afectos que faltam e que, esses sim, seriam essenciais.

Ou um sofrimento que é feito de recados agrestes e de críticas, mais ou menos veladas, dirigidos a essa mãe ou a esse pai que são, afinal, metade do que são os seus filhos, porque são metade da vida e da identidade dos seus filhos.

Um sofrimento que é feito de abandono, de ausência, de violência. Mas que, por não ser a violência que deixa hematomas (na pele), nem o abandono que causa a desnutrição, nem a ausência de higiene, se vai cobrindo de invisibilidade, para as diferentes entidades que têm o dever de sinalizar e a função de proteger.

E que não sinalizam, porque ignoram (e, às vezes, preferem ignorar), e que não protegem porque ignoram também (e, às vezes, preferem ignorar).

E os danos colaterais permanecem. Uma geração de danos colaterais, calada, confusa, em sofrimento, descrente e desconfiada dos outros, do amor e de si própria.

Uma geração em que cresce o desnorte, crescem os consumos de drogas ou outras formas de adição, cresce a solidão e cresce o risco.

Porque para as vítimas, e especialmente para estas vítimas, toda a vida é um risco.

* Socióloga; professora universitária ISCSP-ULisboa

IN "PÚBLICO"
20/11/19

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