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* Investigador da Universidade de Lisboa.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
05/10/19
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Museus e política
Uma coisa é certa: tem de haver uma nova agenda política para o dia a
seguir às eleições. Embora difícil e sempre incompleto, o que foi feito
até aqui não serve para encher o programa de qualquer governo que aí
venha. Já não bastará como bastou reduzir os impostos directos, aumentar
a despesa com pensões, saúde e educação, de forma sustentada, e mudar o
discurso da constante desgraça para o de algum optimismo sobre um país
que já muito deu à história. Bem sei que muitos dizem que aconteceu
precisamente o contrário de tudo isto, mas a verdade virá
necessariamente à superfície. O que deve então ser feito?
Por
exemplo, algo deve ser feito em torno das dinâmicas de investimento
público. Nas últimas décadas, o investimento público foi canalizado
sobretudo para a satisfação das necessidades mais básicas de um país com
grandes deficiências de infraestruturas. Houve erros - e alguns graves
-, todos sabemos, mas ficou algo de esmagadoramente importante. Foi
feito saneamento onde não havia, estradas e pontes onde era preciso, e
hospitais e escolas onde as deficiências eram notórias. A economia do
país cresceu pouco quando isso aconteceu, o que trouxe problemas, mas
uma coisa não tem que ver com a outra. A economia cresceu pouco porque
não conseguiu acompanhar um mundo com transformações que lhe foram
adversas. Mas o país ganhou capital humano e físico essencial para esse
novo patamar de desenvolvimento.
O investimento em infraestruturas fundamentais foi travado durante a troika
e o governo que agora acaba não teve capacidade financeira para o
retomar com a força necessária. Isso vai ter de ser feito no futuro. Mas
saneamento, escolas ou hospitais são áreas em que as carências são
fáceis de identificar, que envolvem os cidadãos, e para as quais há um
enquadramento institucional com processos de concepção e execução
relativamente bem estabelecidos.
Todavia, os planos para o futuro
deverão entrar por áreas mais complicadas, onde o enquadramento
institucional está pouco testado e é altamente deficiente. E, quanto a
isso, há dois campos de maior importância, a saber, o da economia verde
(chamemos-lhe assim) e o da cultura. Olhemos para o segundo e, em
particular, para o caso dos museus da capital, para tentarmos
identificar os problemas que precisam de ser cuidados e remediados. Como
não sou perito nestas coisas, apenas posso falar a partir da
experiência enquanto cidadão preocupado e esforçadamente observador.
Lisboa pode inclusivamente ser considerada um dos piores exemplos, pois
em Coimbra, Porto ou Viseu as coisas parecem correr um pouco melhor.
Comecemos
pela enorme descoordenação dos museus da capital. O primeiro sinal de
descoordenação é entre os dois ou três grandes museus privados ou com
colecções privadas e os museus públicos.
Para a arte contemporânea temos
dois museus privados e um público. Este último, o do Chiado, está
virtualmente abandonado, sem uma exposição coerente do acervo, e com
exposições temporárias difíceis de entender. Há um par de anos, foi
gasto dinheiro numa obra de extensão difícil de entender.
A gestão está
totalmente desligada do que se passa na Gulbenkian e na tristemente
famosa Colecção Berardo, assim como de obras dispersas pela cidade, num
inventário público ainda por fazer.
Na arte antiga, temos um
grande museu, mas que recentemente perdeu, por cansaço, um director
eficiente. O novo Museu dos Coches é talvez a mais disparatada obra de
regime, que nunca deveria ter sido iniciada e muito menos terminada.
Quanto a museus pequenos, temos o da Arqueologia, que sofre de
subfinanciamento crónico, estando disperso em vários locais; o Museu
Etnográfico, uma preciosidade que se tem aguentado, mas desligado, por
exemplo, do acervo da Sociedade de Geografia; ou o Museu do Azulejo, que
conta uma história desencontrada. A arte romana está dispersa pela
cidade (neste caso, inevitavelmente) mas também ela desligada. Acrescem
os problemas de tratamento dos achados arqueológicos resultantes das
obras na cidade.
Tudo isto está aqui exposto de forma amadora, pois não tenho
conhecimentos para o fazer de outra forma. Mas é evidente que falta uma
coordenação deste gigantesco e importantíssimo conjunto de peças
museológicas, problema que deveria ser enfrentado. E não se trata apenas
de dinheiro. Não só houve dinheiro mal gasto, que poderia ser
repensado, como se projectam novas obras de regime como a "conclusão" do
Palácio da Ajuda ou um tal de Museu dos Descobrimentos.
Trata-se
de um exemplo claro de necessidade de futuro investimento público, que
requer coordenação e alteração do enquadramento institucional. E haverá
mais exemplos. O próximo governo será capaz de mexer neste estado de
coisas? Terá força para mudar o enquadramento institucional? Se for
capaz, todos ficaremos melhor e ver-se-á um país a avançar. Se não for, o
caminho do recuo ao passado será mais difícil de evitar.
* Investigador da Universidade de Lisboa.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
05/10/19
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