06/10/2019

PAULO LEOTE E BRITO

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Amor e uma campanha

A minha primeira campanha eleitoral aconteceu no primeiro ano em que houve eleições livres em Portugal, tudo por causa de uma paixão. Antes disso, lá por casa, o entusiasmo não era assim muito, mas ninguém se intrometia nas minhas escolhas, que na listas da escola variavam entre a UDP e o CDS, conforme a paixão mandava, que isto de ser adolescente é uma vida muito parecida com a dos marinheiros.

Mas aquela rapariga era tão bonita que se tornou irresistível ao miúdo de 14 anos que eu era, e o “tens de vir para o partido” com que me enganou, sobretudo porque acompanhado por um ofuscante brilho nos olhos, na cara, no sorriso, no cabelo, comigo a pensar que era tudo por mim. O seu brilho vinha do que a revolução anunciava e eu, perdido de amores, inscrevi-me no partido.

Ocupámos uma casa de um capitalista qualquer para servir de sede do partido e rapidamente me vi transformado em servente de pedreiro só para o momento em que ela me trazia as sandes e a garrafa de Sumol, acrescentando um beijo e um sorriso à ementa. Noutros dias andávamos de braço dado em manifestações e campanhas, noutros ainda, pela calada da noite, a colar cartazes e nessas noites podia roubar-lhe, por mais tempo, beijos e algumas intimidades.

Rapidamente a sede do partido ficou pronta e rapidamente começaram os primeiros problemas. Éramos de bairros diferentes e quando alguém o percebeu recambiou-me para a sede correspondente à morada dos meus pais. Comecei a perceber melhor onde me tinha enfiado, quando me vi com a chave da sede do partido do meu bairro com a missão de ir buscar propaganda para uma manifestação e dei de caras com um poster de um homem cuja cara não me inspirou simpatia, antes pelo contrário.

Nessa noite vi-me enfiado, de poster, com a fronha do senhor, na mão, dentro de um carro, obrigado a dar vivas a umas coisas e desejar morte a outras. A rapariga seguiu noutro carro, ainda a vi de passagem, cheguei atrasadíssimo ao jantar em casa e nessa noite percebi que amor, manifestações e campanhas eleitorais não eram coisa que eu gostasse de misturar.

A ideia de um amor e uma cabana rapidamente se tinha transformado num amor e uma campanha, esfumando-se em definitivo quando as colagens de cartazes nos dividiram por grupos diferentes. Desisti de abraçar a causa politica porque o que eu queria mesmo era andar abraçado à rapariga.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
01/010/19

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