31/10/2019

HELENA ROSETA

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Anos dourados

Felizes aqueles que conseguem viver com intensidade os anos dourados da sua velhice. Também para mim esse é agora um vasto programa.

Disse-me um dia uma grande escritora portuguesa, Isabel Barreno, que o envelhecimento é o aumento do ser. E eu, que tenho uma visão geológica da duração da vida, subscrevo inteiramente esta afirmação: é muito mais rico, até na diversidade da paisagem que suporta, um território com milhões de anos de transformação e acumulação do que uma zona arenosa recente, miocénica, inexpressiva.

Vivemos no entanto dominados pelo culto da juventude, padrão de comportamento e símbolo de saúde e beleza. A ditadura da novidade impregna as sociedades de consumo e gera uma aceleração e ansiedade crescentes, a que se junta a frustração da inacessibilidade às múltiplas e caras solicitações que bombardeiam as pessoas.

Há alguns anos, Alvin Toffler apresentava em Lisboa a sua interpretação da terceira vaga, numa perspectiva de optimismo iluminado face à inevitabilidade do progresso. Perante uma sala apinhada de gente, levantei-me e perguntei, provocadora: e qual é o lugar da saudade? Fiquei sem resposta por dificuldades de tradução.

A dimensão vertical da duração, que requer lentidão e profundidade, foi destronada pelo endeusamento da dimensão horizontal, a da rapidez e simultaneidade. Alessandro Baricco, no seu ensaio “Os bárbaros”, fala mesmo de uma mutação: as novas gerações criadas no tempo da internet e dos telemóveis “inteligentes” não falam a mesma língua que nós, os antigos, que crescemos com livros. O que nos separa é uma forma de apreender a realidade que deixou de ser vagarosa e sequencial, requerendo tempo, meditação e memória, para outra, ultraveloz e dispersa por múltiplos assuntos ao mesmo tempo, exigindo agilidade mental e familiaridade com toda a panóplia de ferramentas da revolução informática. A novidade apaga a memória, que se confia à tecnologia. O pior é que sem memória individual não pode haver verdadeira inovação – todos construímos sobre o que muitos, antes de nós, legaram.

É verdade que vivemos uma outra revolução, demográfica, que alterou profundamente as nossas vidas. Com novas condições de higiene e saúde, a esperança de vida aumentou e a simultaneidade de quatro gerações já não é uma raridade. Temos perspectivas de períodos pós-reforma cada vez mais longos, com a pressão que isso provoca nos sistemas de pensões, enquanto, por outro lado, o tempo se acelerou e o ritmo da chamada “vida activa” é tão intenso que deixa as pessoas esgotadas.

Precisamos de mudar a forma como percorremos os anos que nos é dado viver, compensando a agitação do dia-a-dia com a intersecção de outros ritmos – não apenas férias ou feriados, mas anos sabáticos, horários desencontrados, ocupações criativas, mistura de tempos activos e tempos de descanso e fruição. A idade da reforma devia poder ser modulada, permitindo tempos de transição à medida. Enquanto não inovarmos nestas matérias, a longevidade, que é um privilégio, converte-se, a maior parte das vezes, num facto adicional de stress para os próprios e seus familiares.

Falamos do “nosso tempo” para referir com nostalgia a suposta “idade de ouro” da juventude. O nosso tempo é o tempo que estamos a viver. O nosso tempo é hoje. Felizes aqueles que conseguem viver com intensidade os anos dourados da sua velhice. Vasto programa também para mim, agora que terminam, a meu pedido, as funções públicas que até aqui desempenhei: deputada à Assembleia da República e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa.

IN "PÚBLICO"
30/10/19

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