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IN "PÚBLICO"
30/10/19
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Anos dourados
Felizes aqueles que conseguem viver com intensidade os anos dourados da sua velhice. Também para mim esse é agora um vasto programa.
Disse-me um dia uma grande escritora portuguesa, Isabel Barreno, que o
envelhecimento é o aumento do ser. E eu, que tenho uma visão geológica
da duração da vida, subscrevo inteiramente esta afirmação: é muito mais
rico, até na diversidade da paisagem que suporta, um território com
milhões de anos de transformação e acumulação do que uma zona arenosa
recente, miocénica, inexpressiva.
Vivemos no entanto dominados pelo culto da juventude, padrão de
comportamento e símbolo de saúde e beleza. A ditadura da novidade
impregna as sociedades de consumo e gera uma aceleração e ansiedade
crescentes, a que se junta a frustração da inacessibilidade às múltiplas
e caras solicitações que bombardeiam as pessoas.
Há alguns anos, Alvin Toffler apresentava em Lisboa a sua
interpretação da terceira vaga, numa perspectiva de optimismo iluminado
face à inevitabilidade do progresso. Perante uma sala apinhada de gente,
levantei-me e perguntei, provocadora: e qual é o lugar da saudade?
Fiquei sem resposta por dificuldades de tradução.
A dimensão
vertical da duração, que requer lentidão e profundidade, foi destronada
pelo endeusamento da dimensão horizontal, a da rapidez e simultaneidade.
Alessandro Baricco, no seu ensaio “Os bárbaros”, fala mesmo de uma
mutação: as novas gerações criadas no tempo da internet e dos telemóveis
“inteligentes” não falam a mesma língua que nós, os antigos, que crescemos com livros.
O que nos separa é uma forma de apreender a realidade que deixou de ser
vagarosa e sequencial, requerendo tempo, meditação e memória, para
outra, ultraveloz e dispersa por múltiplos assuntos ao mesmo tempo,
exigindo agilidade mental e familiaridade com toda a panóplia de
ferramentas da revolução informática. A novidade apaga a memória, que se
confia à tecnologia. O pior é que sem memória individual não pode haver
verdadeira inovação – todos construímos sobre o que muitos, antes de
nós, legaram.
É verdade que vivemos uma outra revolução, demográfica, que alterou
profundamente as nossas vidas. Com novas condições de higiene e saúde, a
esperança de vida aumentou e a simultaneidade de quatro gerações já não
é uma raridade. Temos perspectivas de períodos pós-reforma cada vez mais longos,
com a pressão que isso provoca nos sistemas de pensões, enquanto, por
outro lado, o tempo se acelerou e o ritmo da chamada “vida activa” é tão
intenso que deixa as pessoas esgotadas.
Precisamos de mudar a forma como percorremos os anos que nos é dado
viver, compensando a agitação do dia-a-dia com a intersecção de outros
ritmos – não apenas férias ou feriados, mas anos sabáticos, horários
desencontrados, ocupações criativas, mistura de tempos activos e tempos
de descanso e fruição. A idade da reforma devia poder ser modulada,
permitindo tempos de transição à medida. Enquanto não inovarmos nestas
matérias, a longevidade, que é um privilégio, converte-se, a maior parte
das vezes, num facto adicional de stress para os próprios e seus familiares.
Falamos do “nosso tempo” para referir com nostalgia a suposta “idade
de ouro” da juventude. O nosso tempo é o tempo que estamos a viver. O
nosso tempo é hoje. Felizes aqueles que conseguem viver com intensidade
os anos dourados da sua velhice. Vasto programa também para mim, agora
que terminam, a meu pedido, as funções públicas que até aqui
desempenhei: deputada à Assembleia da República e presidente da
Assembleia Municipal de Lisboa.
IN "PÚBLICO"
30/10/19
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